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João-Maria Vilanova - um poeta que morreu por Angola

Se o espírito do homem não viver  por grandes causas, o seu corpo pode morrer em qualquer dia.

Não é despiciendo que em Portugal um poeta ponha termo à vida com Angola no coração. Inconformados ou resignados, muitos já foram os que, antigos habitantes do "paraíso perdido", colonos e naturais,  chegaram ao fim de uma ausência  não desejada sem terem conseguido vencer um sentimento de perda que,  quando  plasma da memória, também  se chama saudade e que para alguns foi como morrer duas vezes. Mas estes, diferentemente de João-Maria Vilanova, não decidiram quando deveriam morrer - foram morrendo lentamente até ao  último suspiro.
O que se conhece deste  homem e  poeta angolano,  português de origem mas   angolano de vivência, que sempre encobriu o nome verdadeiro,  local de nascimento, profissão e estado civil,  não autoriza a dizer, aprioristicamente,  que ele morreu por Angola. Mas ninguém hesitará em reconhecer que ele  deixou o mundo dos vivos com Angola no coração.
Consiste a  obra publicada de João-Maria Vilanova em  poemas e artigos dispersos por  jornais e revistas de países de língua oficial portuguesa, e outros, designadamente no semanário ÁFRICA, de Lisboa, em  1990/91; na criação, ainda em 1974, de uma revista, que teve um só número e o emblemático título de "Ngoma" (instrumento musical de percussão=tambor); e  em três pequenos livros somando 68  poemas, editados em Angola, tendo o último já saído com o autor no "exílio": "Vinte Canções para Ximinha" (1971), "Caderno dum Guerrilheiro" (1974) e "Mar da minha terra & outros poemas" (2004).  A Editorial Caminho, em 2004, reeditou os dois primeiros livros, num único volume, com o título genérico de "Poesia".
Não ficou em África, depois de 1975,  por razões que não se prendem com a incerteza de poder prosseguir a profissão de jurista ou outra qualquer que lhe aprouvesse; não voltou a Angola, nem de visita, sabendo que seria acolhido de braços abertos; e em Portugal, do que é possível deduzir, foi um chefe de família normal. Porque decidiu então lançar-se  das alturas de um prédio para a morte,  como num voo para o éter que não era previsível?
Talvez a resposta plena que corrigirá  todas as presunções  esteja no espólio documental, incluindo a obra inédita que  por qualquer razão ele não quis publicar em vida. Mas uma coisa é certa: morreu com Angola no coração aquele poeta oculto sob um pseudónimo que acabou sentindo  Portugal como o último cais e que, evocando (sem o nomear no poema "Mar da minha terra")  Fernando Pessoa, disse como ele:  "Todo o cais é uma saudade de pedra".
A ocultação permitia a Vilanova  não ter de se isolar no último lugar do mundo (onde já se encontravam auto-exilados outros camaradas de luta)  para  não ser  pressionado a dar respostas que porventura feririam o seu coração angolano já atormentado pelas visões de uma África hoje  submetida a outras formas de opressão e exploração. Mesmo pensando que os ideais do passado valiam por si mesmos, não poderia, agora,  dizer "enganei-me" ou "enganaram-me", tão-pouco manifestar a crença numa nova utopia, ou num novo "mito criador" que congregasse as puras vontades (como lhe chamou um  confrade angolano ?desencantado?), não tendo uma resposta certa  à  pergunta inevitável: "E agora, que fazer?".
O que  hoje mais perturba  é pensar se a resposta não está naquele imprevisível salto espectacular  das alturas de um prédio para a morte, como num voo para a posteridade. E se com esse salto ele não terá desejado afirmar, pela escolha de um meio retumbante que desafiava o "costume" prosaico dos deprimidos e que opunha a lógica à absurdidade, que o seu ego angolano não se satisfaria com um "exílio" eterno ou uma "fuga" para qualquer "Sul" ou "Margem" com "paisagens propícias", como sucedeu a  ex-"compagnons de route" desiludidos por não verem realizada a "utopia" de todos os angolanos livres e felizes, sem se interrogarem se o que fizeram realmente por ela teve algum efeito ou importância.
Camus começou O Mito de Sísifo com uma questão: "Só há um problema sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia."
Prisioneiro no "círculo de giz" que foi o  anonimato que lhe permitiu defender a grande causa da sua vida de escritor comprometido com a libertação de Angola e da África toda, a resposta de João-Maria Vilanova  à filosofia seria fácil: se o espírito do homem não viver  por grandes causas, o seu corpo pode morrer em qualquer dia.


  
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Edição:

N.º 153
Ano 15, Fevereiro 2006

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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