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Criança se alfabetiza em um ano?!

As crianças das classes medias estão expostas, desde o nascimento, ao código letrado. Já as crianças das classes populares, desde o nascimento, estão expostas à cultura oral familiar e depois à cultura audiovisual mídiatica (rádio e TV). O código letrado entra nas suas vidas com a entrada na escola. É preciso dar-lhes mais tempo.

Esta é uma discussão recorrente em minhas salas de aula.
Sempre que uma das alunas-professoras (1) levanta a questão do tempo necessário para uma criança dar conta daquilo que o senso comum identifica como alfabetização, a decodificação do código escrito, os ânimos logo ficam acirrados: o delas e o meu.
Procuro argumentar com o fato de que as crianças das classes médias da população se alfabetizam em um ano escolar. Desde o nascimento estão expostas ao código letrado. Já as crianças das classes populares, desde o nascimento, estão expostas à cultural oral familiar e do entorno geográfico-social, bem como um pouco mais tarde à cultura audiovisual midiática (rádio e TV). O código letrado entra em suas vidas junto com sua entrada na escola. É preciso, pois, oferecer-lhes mais tempo.
As alunas-professoras raramente costumam aceitar esta argumentação.
Nos últimos dois meses, minha neta de dois anos e meio tem passado os finais de semana comigo. De visitas quinzenais dominicais, passamos a conviver semanalmente, o que torna nossas ações mais naturais, uma vez que há o serviço doméstico a ser realizado e ela, por sua vez, tem a oportunidade de brincar sem a presença de um adulto.
No primeiro final de semana, surpreendi-me, da cozinha, com sua vozinha vinda da sala acompanhada de palminhas. Parecia cantar. Pé-ante-pé, para não interrompê-la, fui ver o que fazia. Sentada na poltrona, perninhas balançando, segurava um dos livros infantis que apanhara da estante (herança de meus filhos) e dirigia-se a uma platéia imaginária, à sua frente. Folheando o livro, ?contava? uma história seguindo as ilustrações. A cada página, após a narrativa, levantava o livro, acima da cabeça, com a gravura voltada para a ?platéia? e perguntava: Viram? E seguia adiante, repetindo o gesto.
Emocionei-me com a cena. Lembrei-me imediatamente das discussões em sala de aula. Queria ter uma filmadora para gravar o episódio e levá-lo para minhas turmas. Compreendi o que se passava: repetia os gestos da professora de sua escola maternal. Aprendera um dos sentidos da leitura. Ao mesmo tempo, lembrei-me das milhares de crianças das classes populares que só muito mais tarde vão ter a oportunidade (se é que terão) de ouvir uma história contada com a leitura de um livro.
Não é que as crianças populares não ouçam histórias, mas a ouvem pela tradição oral. Na escola, durante o processo de alfabetização estrito senso, este fato marca diferença. Enquanto umas já trazem o(s) sentido(s) da leitura e, conseqüentemente, da escrita, tecido em seu meio social, outras ainda terão que aprendê-lo. Como fazer a mesma exigência para grupos com um ponto de partida tão desigual?
Também não se trata de esperar que as crianças das classes populares primeiro aprendam os sentidos da leitura e da escrita, para depois lhes ensinar a decifração do código. Trata-se de incorporar metodologias de trabalho pedagógico que lhes possibilitem entender os sentidos ao mesmo tempo em que aprendem a decodificação. Contar histórias utilizando material impresso parece-me uma das formas de se conseguir isto.

Nota:
1) Nos cursos de Pedagogia brasileiros, é comum termos professoras das primeiras séries do Ensino Fundamental matriculadas.


  
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Edição:

N.º 153
Ano 15, Fevereiro 2006

Autoria:

Joanir Gomes de Azevedo
Fac. de Educação da Univ. Federal Fluminense, UFF, Brasil
Joanir Gomes de Azevedo
Fac. de Educação da Univ. Federal Fluminense, UFF, Brasil

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