Página  >  Edições  >  N.º 152  >  A cultura portuguesa em questão

A cultura portuguesa em questão

O título de um artigo do professor catedrático do ISCTE, José Cresco de Carvalho, publicado no semanário EXPRESSO, em Outubro último, - "A crise é cultural" - logo atraiu a nossa curiosidade. Primeiro, porque coincidia com releituras que estávamos a fazer, sobre a mesma temática, designadamente os "Ensaios Etnológicos" de Jorge Dias e "Pela Mão de Alice" de Boaventura de Sousa Santos. Depois, porque  as primeiras linhas nos remetiam para uma questão candente:  avaliar em que medida devia ser imputada à cultura do nosso povo "a maior parte da responsabilidade, senão a totalidade, da crise que atravessamos hoje".
Sustentava o articulista: "A crise não é económica, portanto. A crise é cultural. E é a cultura que contagia, numa economia débil e aberta como a nossa, o desempenho económico. Os últimos trinta anos foram de grandes mudanças. Apanhar o passo civilizacional europeu após um período de fecho ao mundo, por tempo excessivo, concomitantemente com as mudanças sociais disruptivas que ocorreram no virar do século e no início de uma nova era, não é tarefa fácil, [pelo que ]  todos juntos, políticos, governantes, gestores, empresários, professores, enfim, prescritores em geral, seremos poucos para conseguir revolver a cultura, (re) construindo os efeitos positivos de que necessita."
E considerando que "os elementos centrais de uma cultura são os símbolos, os heróis, os rituais e os valores", entendia  que seria importante, entre outras "medidas simples, que poderiam alterar profundamente o estado de depressão da cultura nacional", começar por mudar o "design" da Bandeira Nacional; aditar aos heróis consagrados as modernas figuras com notoriedade; actualizar os rituais aproveitando a televisão e a rádio para contar uma história diária edificante; e quanto aos valores, "precisamos de nos tornar mais colectivistas" estimulando em todos os graus do ensino o trabalho de equipa. 
Poupando  este espaço limitado de explanações semânticas e epistemológicas, diríamos que o articulista, talvez levado pelo seu louvável voluntarismo,  simplificou a problemática metendo cultura e civilização no mesmo cadinho. Ora isso não deve acontecer, se quisermos pensar que  uma "terapia" para a "depressão" que realmente afecta o País tem de olhar a quatro  vertentes: a económica, a cultural, a civilizacional e a política, sendo que a primeira se revela  imediatamente nas feridas da  pele dos portugueses e as outras, em conjunto ou segmentadas, exprimem o estado de espírito (ou a psicologia) das classes sociais que enformam a Nação.
Jorge Dias, por exemplo, diz que existe uma "psicologia-base" que caracteriza a sociedade. Entendida, antropologicamente,  como uma "cultura nacional", poderíamos, sociologicamente, especular quanto à diversidade dos seus segmentos demográficos, donde seríamos levados a admitir que a "cultura" do povo não é a mesma das suas élites: enquanto a primeira exprimirá os valores endógenos que as quatro medidas de Cresco de Carvalho deseja estimular, a das élites acumulou (reconstruindo)  os valores exógenos da civilização. Daqui, porventura, a "hipótese de trabalho" de Boaventura de Sousa Santos de que "a cultura portuguesa não tem conteúdo, tem apenas forma, e essa forma é a fronteira, ou a zona fronteiriça."
Entre Dias e Santos, opinamos que existe uma "zona de fronteira" até ao ponto em que não são feridos de morte os elementos que consubstanciam o "ethos", ou dizendo de outra maneira, aquilo que, desde a génese, distingue as manifestações  comportamentais das sociedades, mesologicamente um europeu de um ameríndio, ontologicamente  um cristão de um hindu, politicamente um rico de um pobre. Isto faz culturas com fronteiras. O que as abate,  dilui ou compatibiliza   é  a civilização. 
Se quisermos abater também a "tensão entre universalismo e particularismo", - usando outra expressão de Sousa Santos - na mira  de um "produto histórico" que consagraria a máxima estóica de que  o Homem é a medida de todas coisas (portanto a do progresso e a da "aurea mediocritas"), as três primeiras "medidas simples" propostas por Cresco de Carvalho ofereceriam o risco de alimentar mentalidades retrógradas, semelhantes às que  já ilharam Portugal (recorde-se o período salazarista) dentro das fronteiras de um individualismo fanático, preso a crenças e mitos que foram responsáveis por outras crises económicas, culturais, civilizacionais e políticas, mais ou menos mitigadas.
O que terá de questionar-se, por conseguinte, é se o modelo económico-cultural que vem a ser prosseguido não está condenado a esgotar-se por acção dos vírus que ele próprio gera e cada vez menos controla.
Na rebelião, em Novembro último,  dos jovens franceses está um bom exemplo das "zonas de fronteira" que se formam sempre que o abismo consentido genericamente entre ricos e pobres é concomitante com   demarcações de cultura e civilização e por vias destas se (re) configura o Eu e o Outro, nas suas diversas  representações sociais: umas vezes de raça, outras de  religião, outras ainda de  classe - confessadamente ou não.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 152
Ano 15, Janeiro 2006

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo