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Treinadores de bancada

... os professores tendem a ser vistos como uma espécie de Indianas Jones, capazes de enfrentar os problemas mais inverosímeis e tendo sempre à mão a resposta pronta e afiada, necessária para sobreviver aos desafios mais inesperados...

Foi a nossa colega Angelina Carvalho que nos mostrou que, também, no mundo da educação a figura do treinador de bancada já existe(1). Falando-nos das ?personagens enternecedoras? que estas figuras constituem, descreve-os com rigor suficiente ao mostrar-nos como se encontram ?cheios de senso comum ? mas com imenso entusiasmo; com pouca ou nula informação séria sobre o assunto ? mas profundamente convictos das suas opiniões?. Constata, assim, que não é o facto de não terem nenhum tipo de preparação teórica específica ou de experiência prática consequente que os impede de avaliar os desempenhos físicos, técnicos ou tácticos dos jogadores e a capacidade de gestão e de liderança dos treinadores. Circunscritos inicialmente aos campos de futebol acabaram por afirmar-se noutros espaços e noutras áreas dos nossos quotidianos, sacrificando, também aí, a reflexão serena, sustentada e exigente ao vórtice mediático das opiniões fugazes. Basta ler o que os Miguéis de Sousa Tavares, as Fátimas Bonifácios ou os Henriques Monteiros deste mundo escrevem sobre as escolas, os professores e os alunos para se compreender como o fenómeno dos treinadores de bancada se vai universalizando e adquirindo uma crescente importância pública no domínio da produção de opiniões sobre questões do foro educativo.
Como nos lembra a Angelina Carvalho, ao evocar os escritos mais recentes de Daniel Sampaio, este, tal como todos os outros, ?tem pouca informação sobre toda a complexidade da vida na escola, suas contingências, suas contradições e sinergias criativas ? ofensivas ou defensivas -, mas lê os comentadores de fim-de-semana sobre a educação e, eventualmente, tem conversas num círculo alargado de relações com muitos professores, em que a palavra chave «eu acho que» parece dar entrada para um mítico mundo de saberes não fundamentados? (Carvalho, 2005: 2).
É, assim, que de algum modo se cria um tipo de universo artificial em função do qual se começa por promover a ideia de que as escolas podem assumir responsabilidades sociais que, de facto, não poderão assumir sozinhas, ainda que perante o actual estado das coisas o tenham vindo a tentar fazer, não se sabendo bem a que preço e em nome de que resultados. No seio de um tal universo, os professores tendem a ser vistos como uma espécie de Indianas Jones, capazes de enfrentar os problemas mais inverosímeis e tendo sempre à mão a resposta pronta e afiada, necessária para sobreviver aos desafios mais inesperados. Às crianças maltratadas responde-se com uma disponibilidade pessoal que justificaria, mais tarde ou mais cedo, a santidade. A falta de condições, na visão mais penalizante, é entendida como um álibi, justificada pela proverbial inacção dos professores, ou, na visão mais voluntarista, é interpretada como um pretexto para estes exercitarem quer a sua imaginação quer o seu estoicismo. Perante as aulas/actividades de substituição exige-se que promovam debates, conversem sobre os problemas da escola com os alunos, animem com mestria as actividades que os portfolios de disciplinas diferentes das suas propõem, leiam poesia ou vão contando umas graças. Poderá um professor desejar outro destino sem que esteja a correr o risco de trair a profissão que abraçou?
Um dos problemas deste tipo de ficções, que os nossos treinadores de bancada vão alimentando, tem a ver, sobretudo, com a crueldade das mesmas. Crueldade para os professores que se encontram constantemente a confrontar-se com uma imagem idealizada de si, a qual, apesar de insensata, contribui para que a profissão tenda a ser vivida de forma dolorosamente deficitária. Crueldade para todos nós que, afinal, andamos a adiar discussões e reflexões tão necessárias quanto urgentes, por força das ilusões voluntaristas que hoje, afinal, são utilizadas como armas de arremesso que se lançam prioritariamente contra os professores. Crueldade, ainda, porque impede as escolas e muitos dos docentes que nelas intervêm a saírem de muitos becos sem saída onde têm andado perdidos. 
Não sabemos, assim, se este é um país de treinadores de bancada, sabemos, apenas, que os treinadores de bancada são um problema para o país, sobretudo quando são levados a sério e se criam as condições para que sejam levados a sério.

1) CARVALHO, Angelina (2005). O treinador de bancada. Correio da Educação, nº 233, 1-2. Porto: CRIAP ? ASA.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 152
Ano 15, Janeiro 2006

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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