A página da educação entra este mês no seu xv ano de publicação
Chamemos ao fenómeno crescimento legislativo. Cresce o conhecimento e cresce em exponencial a legislação. Existe um fenómeno de «hiper-regulação». Nada escapa ao legislador. Tudo tem de ser legalmente enquadrado, controlado, explicitado, definido, regulamentado. As escolas e os professores, sem autonomia, são estrangulados pela regulamentação. Os donos do sistema, em vez de reinventarem um novo sistema educativo, embrulham a múmia ressequida em mais redes regulamentadoras. «A Página da educação» esforça-se por não ir rio abaixo mas por ir rio acima.
O ser humano, nas nossas sociedades «evoluídas», move-se no interior de uma jaula limitada por uma rede legislativa apertada. Constituições, códigos, leis de bases, tratados, regulamentos, acordos, leis, leis gerais, leis-quadro, regulamentos, tabelas, despachos, normas, ratificações, alterações, pareceres, circulares, ofícios, adendas ... tornam a nossa sociedade sufocante, cortam a respiração, a liberdade e, sobretudo, a iniciativa, a imaginação e a criatividade. Nalguns Estados dos Estados Unidos da América foi agora publicada legislação que determina que os pais não podem fumar à frente dos filhos. Os fumadores não podem adoptar crianças. Não podem fumar nos lares onde vivam crianças e podem ser despedidos do emprego por serem fumadores. As conhecidas «drogas» continuam proibidas para grande alegria e lucro dos traficantes. A fúria regulamentadora e proibicionista continua em desenvolvimento. Como se o certo e o errado se imponha por lei ou à cacetada. Por outro lado tudo o que dê prazer tende a ser visto como pecado e sendo pecado como crime. A escola não escapou a esta característica civilizacional. Também na escola quando não se sabe o que fazer faz-se mais uma lei, um regulamento, um projecto, um plano, uma norma, um regulamento, uma orientação, um diploma, um estatuto, um despacho, uma circular ... não se dá autonomia. A burguesia que no dealbar do século XIX criou o sistema educativo que temos pasmava se fosse confrontada com este frenesim regulamentador. Essa burguesia ocidental queria leis duradouras, simples e confiáveis. Desejava com fervor a certeza e a previsibilidade e foi com esses desejos de estabilidade e de durabilidade que criou os sistemas educativos que ainda temos. No passado eles eram simples e tinham orientações claras. A escola que agora temos, democrática ou de massas ou de todos e para todos, devia exigir maior flexibilidade e criatividade no pensar e resolver os seus problemas. Mudou a sociedade, a ciência e a população escolar mas permanece já não o corpo vivo mas tão só a múmia bolorenta do velho sistema educativo cada vez mais «reformada», embrulhada e enredada na rede regulamentadora. Como se mais regulamentos dessem vida ao esqueleto! Mas não deixa de ser curioso vermos que a burguesia que hoje se queixa da educação não pede um sistema novo, uma reconfiguração ou reinvenção do modo de ensinar. Não pede nada que responda ao nosso tempo. Pelo contrario, exige um regresso ao impossível, isto é, ao passado. Exigem um regresso ao tempo em que um par de botas era assaz durável e o conhecimento mais duradouro que um par de botas. Querem compatibilizar o incompatível. Desejam que os filhos conheçam todos os clássicos como se estes não tivessem crescido em número com o tempo. Querem que eles saibam toda a matemática, da tabuada dos dois à matemática do caos. Exigem um minucioso conhecimento das ciências desde o conhecimento do calhau rolado, das características da mica, da descrição das linhas férreas às últimas descobertas da genética ou da astronomia. Deve ser por isso que lhes causa terror que as preciosas crias não tenham, pelo menos, 16 horas de aulas por dia durante os sete dias da semana. «Não sou especialista em regimes escolares, nem pretendo sê-lo. Limito-me a constatar que o meu filho, no ensino público, vai encerrar o ano lectivo com cerca de 238 dias sem aulas. Destes, 111 correspondem a fins-de-semana e feriados, os restantes a férias ... na perspectiva de um pai, isto parece pouco, assustadoramente pouco», assim escrevia no PÚBLICO, em tempos, Miguel Sousa Tavares. O filho de Miguel tem demasiadas aulas. Tivesse ele em conta as necessidades educativas de uma criança ou de um jovem na sociedade em que vive e facilmente entenderia que a criatura precisa de menos aulas e de mais tempo para aprender muito do que realmente importa aprender. O conhecimento científico e tecnológico é hoje crucial na formação de qualquer cidadão, mas não é nem o único nem o determinante em muitos casos e não se aprende em aulas ou apenas em aulas. Miguel, pelas responsabilidades públicas que tem, devia saber que não é empanturrando os garotos de aulas que eles aprendem o que eles precisam de aprender. Devia perceber que a natureza do conhecimento de que todos hoje precisamos já não é a mesma de há quarenta ou cinquenta anos atrás e, sobretudo, que se aprende melhor usando outros processos de aprendizagem que não as velhas aulas organizadas com base nas velhas turmas. Se a escola está em crise, se as crianças aprendem pouco (aprendem pouco?!) não é por causa das ciências da educação, menos ainda do velhinho Rousseau, como alguns pacóvios querem fazer crer. Acontece é que a sociedade actual pede cada vez mais saber ? mas saber diversificado ? outros conhecimentos e competências, outro currículo, para lá do currículo herdado do velho iluminismo, outros modos de estar e de abordar o conhecimento, outros modos de produzir e de aprender o saber. Outra escola. O saber ? produzido hoje em quantidade, qualidade e a enorme velocidade ? adquiriu outro valor de uso e outro valor de troca. A nossa sociedade já não se dá com um sistema educativo, organizado em turmas e sentado nas aulas. Um sistema que escolhe a pequena minoria que se adapta ao saber instituído e lança porta fora a maioria da população que devia aprender. O sistema educativo não pode continuar a ser uma espécie de sistema de garimpo que toma como objectivo único separar as presumíveis pepitas de ouro do imenso cascalho. As sociedades evoluídas não são compatíveis com esta selecção e estratificação social. Os estudantes não têm poucas aulas, o que eles têm são poucas oportunidades de aprender, fora do sistema escolar, saberes e competências cívicas, sociais e politicas. O que faz falta é, nestes tempos acelerados, diversificados e agitados, ter calma. É preciso conversar, encontrar a clareza, a lei simples e confiável, o rumo, a durabilidade e a previsibilidade. Responder à crise do ensino significa, antes de mais, pedir à sociedade que se organize em função da necessidade de permitir o conhecimento a todos. Não é a velha escola que se tem de adaptar à nova sociedade. Esta tem de descobrir o novo sistema de educação e ensino que a pode servir melhor. Para que o novo sistema funcione é preciso mudar os modos de vida e de organização da sociedade. Não se ensina nem se educa de forma competente, nos desertos sociais e culturais em que se transformaram as nossas comunidades. A transformação social não se faz ao ritmo dos desejos e necessidades de cada um. É sempre um trabalho colectivo e moroso. Este número do jornal «a Página da educação» abre o 15.º ano de publicação. Procurámos, nos últimos quinze anos, pouco a pouco, no limite das nossas possibilidades, contribuir para o debate educativo e a necessária reinvenção dos sistemas educativos. Agradecemos a todos os que participaram neste debate lendo ou escrevendo. A todos pedimos que continuem a usar este espaço de comunicação. Juntos, ajudaremos a reinventar o novo sistema educativo de que os cidadãos e a nossa sociedade carecem.
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