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Entre Paris e a aldeia

Carro alugado só para a viagem de férias que em Paris não há estacionamento e o automóvel não faz falta. Lágrimas à despedida da aldeia. Não que o regresso seja indesejado. 
A ?terrinha? no fim de Agosto já cansa. E lá, na França, ganha-se melhor. ?Nas tarefas, bon, mais básicas, oui, mais... para os jovens que saem das universidades também está mau hum!? Por enquanto, ainda é no ordenado de femme de ménage que Maria pensa quando faz as malas para o regresso a Paris depois das férias de Verão.
Como porteira ? ?um emprego tipicamente português?, como não esconde Maria ? pode-se ganhar 400 euros e ter casa, água e luz incluídos. Uma boa ajuda para um início de vida. Tomar conta de crianças, como faz uma prima sua, é mais uma tarefa a acumular à de lavar as escadas e guardar as encomendas dos inquilinos. Porque a profissão de porteira não ocupa as horas todas do dia. ?Bah! Oui, e com os dois empregos é possível trazer para casa uns 1200 euros por mês. Um bom salário para uma mãe de família...?, constata Maria. ?Aqui em Portugal nem um homem ganha tanto, c?est vrai, hum!?
Maria e o marido. O irmão do marido de Maria e a esposa. A prima de Maria e o marido. O compadre do irmão de Maria e a esposa. Os tios, primos, afilhados. De geração em geração todos emigraram. Ajudando-se uns aos outros. Para trás ficaram os pais. Não esquecidos. Apenas ficaram no sítio onde sempre viveram. Até que morreram. E as casas de pedra foram ficando vazias. Os campos de cultivo abandonados. A vinha cresce selvagem, na época em que a terra manda, e seca antes da poda, indiferente à vindima. Quem ficou diz ter resistido. Quem partiu diz ter tido coragem. O trabalho na França, sobretudo para a primeira geração de emigrantes, foi duro. Ainda é. ?Mas, bon, a coisa marcha?, despacha Maria. ?Está-se melhor lá que aqui, hum!?
Houve tempos em que a viagem da aldeia a Paris durava dois dias. Na altura em que Daniel regressava com a esposa e as duas filhas ainda pequenas. A estrada agora pertence ao seu sobrinho. É ele quem coloca o cinto aos filhos no banco de trás. A viagem demorará cerca de 15 horas. Dão-se os últimos abraços. Soltam-se as lágrimas à ?sobrinha?. À ?tia?, por afinidade, também. ?O que custa mais é entrar no carro?, recorda Daniel procurando com os olhos a confirmação da esposa. Esta acena que sim com a cabeça enquanto abraça a ?sobrinha?. Os miúdos sabem que vão para casa. A miúda está contente. O miúdo triste. ?Ele passou cá dois meses com a avó?, comenta a mãe para explicar a tristeza do rapaz: ?Brincou, correu, saltou e agora não queria ir embora. Em Paris não tem tanta liberdade.? Os braços cruzados e a cabeça baixa para esconder a cara de choro, são as saudades antecipadas dos montes e dos passeios de bicicleta. Talvez o miúdo pense na sorte do seu primo português cujos pais não imigraram.
Assim que entrava no carro, Daniel só pensava na viagem. ?Pedia a Deus que me guiasse pela estrada e arrancava sem olhar para trás!? Dessas memórias recorda uma viagem em particular. Aquela onde no leitor de cassetes do carro passava a fita do grande êxito da época: ?Un canto a Galicia?, do cantor Júlio Iglesias. ?Lembras-te, quando saiu essa cassete?, pergunta Daniel à esposa. Idos anos 70. ?Viemos o caminho todo de Paris aqui a ouvi-la e a mudar de lado a ouvir e a mudar de lado.?  Eu queroche tanto/ e ainda non o sabes.../ Eu queroche tanto/ terra do meu pai/ Quero as tuas ribeiras/ que me fan lembrare/ os teus ollos tristes/ que me fan chorare/ Ela sorri: ?Claro que me lembro, no lado B tinha aquela música a Manuela!?
Deixou a terra do pai aos 19 anos. Três dias de fome até passar a fronteira, clandestinamente. Adeus ao país de Salazar e a uma vida onde o único emprego possível era no campo. Daniel já não é emigrante. O regresso à aldeia deu-se aos 18 anos da filha mais velha. O ciclo completou-se. ?Agora vou a Paris de visita!? Outros como Maria ainda lá têm o trabalho à espera. 
?Lá os portugueses são vistos como um povo trabalhador, não sei por quê aqui não são?? A estranheza na cara de Maria. Como se um mesmo povo pudesse agir de maneira diferente dentro e fora do seu país. Mas também na França o seu trabalho nas limpezas está ameaçado, acaba por confessar. Os direitos adquiridos no métier caem ao sabor da deflação de ordenados cobrados por uma nova vaga de imigração proveniente dos países de Leste. ?Sujeitam-se a trabalhar por oitos euros e estragam a vida à gente que está a trabalhar por 10...? Voilà! C?est dur, hum!
Mas é Agosto e as aldeias do concelho enchem-se com a sua gente. A da França e a de Portugal. São as ?Festas da Vila?. O cartaz é preenchido com noites regionais. Fados a puxar a lágrima. Ranchos e folclore para dar uma cor nacional ao ambiente. Farturas. Algodão doce. Rompem o quotidiano. Os primos franceses conhecem os portugueses. Vêem-se os parentes. Os compadres. Os irmãos. As avós. Os pais. É tempo de esquecer as amarguras. Dos que ficam e dos que partem também.


  
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Edição:

N.º 150
Ano 14, Novembro 2005

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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