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Uma administração escolar duplamente atópica

Os governos democráticos exercitam, a vários títulos, formas de co-governação com organizações e sectores sociais diversos. São estas práticas de negociação e de debate que aprofundam as formas de deliberação democrática, que garantem a governação democrática pela participação no processo de decisão, ou seja, que democratizam a democracia formal.

No âmbito de uma entrevista sobre questões de administração e autonomia das escolas que a Revista ?O Prof.? (n.º 65), do Sindicato dos Professores da Madeira, publicou no início de 2005, fui instado a comentar a situação vivida na Região Autónoma da Madeira no que concerne à nomeação de gestores escolares, pelo Governo Regional, na sequência do Decreto Legislativo Regional n.º 4/2000/M. Sem entrar em detalhes que exigiam um conhecimento aprofundado, que não detinha, da situação então vivida na Madeira, limitei-me a observar que o recurso à nomeação de gestores escolares contrariava o estabelecido na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Bases do Sistema Educativo. Ainda que, naquele momento, a figura do director escolar constasse dos programas eleitorais do PSD e do PP e dos programas dos Governos (do XV e do XVI), se encontrasse prevista na proposta governamental de Lei de Bases da Educação e, ainda, subjacente à Lei Orgânica do Ministério da Educação (Dec.-Lei n.º 208/2002), o que originava um ambiente propício.
Criticando aquela perspectiva, que considerava de tipo gerencialista, chamava a atenção para o ataque à democracia e à participação em contexto escolar que se encontrava em curso no país, talvez com a Região Autónoma da Madeira à frente nesse processo de ruptura com as práticas democráticas. Se a Secretaria Regional de Educação assumia a nomeação do gestor escolar com base numa legitimidade assente na eleição dos órgãos de Governo da Região, então tratava-se da selecção de uma espécie de administrador-delegado junto de cada escola, recentralizando o poder e obstaculizando as práticas democráticas e participativas nas escolas, paradoxalmente a partir do princípio democrático e constitucional da autonomia regional. Não se podia confundir, afirmava então, a legitimidade democrática do Governo Regional para realizar o seu programa, com a decisão centralizada sobre todas as esferas públicas, como se a democracia política esgotasse ou exaurisse todas as possíveis práticas democráticas em termos sociais, culturais, educativos, etc. Os governos democráticos exercitam, a vários títulos, formas de co-governação com organizações e sectores sociais diversos. São estas práticas de negociação e de debate que aprofundam as formas de deliberação democrática, que garantem a governação democrática pela participação no processo de decisão, ou seja, que democratizam a democracia formal.
Quanto à dimensão jurídica nada de novo acrescentava naquela entrevista, pois o Tribunal Constitucional havia declarado a ilegalidade de várias normas do Decreto Regional. A questão era sobretudo de concepção democrática, como aliás Alberto João Jardim observou num artigo de opinião publicado em 18 de Março de 2005 no Jornal da Madeira, intitulado ?E lá estão ?eles? na parvoíce??. Em poucas linhas desvalorizava a minha posição, embora não contra-argumentando, e insurgia-se contra as críticas que formulara à opção pelo gestor escolar na Madeira. Tudo isto, atribuindo-me o governante, ?um estranho conceito de ?democracia?. Esta não seria a orientação decidida pelo Povo soberano, através dos seus órgãos eleitos. Seria, antes, o forrobodó de, em cada sítio, a coisa correr à mercê de cada um. Logo na Educação??.
Conceito estranho de democracia, sou forçado a concluir eu. A partir de uma legitimidade eleitoral, de tipo primordial, tudo ficaria decidido a priori e para sempre, dispensando todos os outros (os não vencedores), transformando a governação numa ditadura da maioria. Às escolas ficaria reservado o papel de aparelhos burocráticos de reprodução fiel das políticas centralmente definidas, quando muito ensaiando algumas práticas participativas em torno de questões menores, mesmo assim sob supervisão directa de representantes do governo junto de cada estabelecimento. A história portuguesa é, a este propósito, bem eloquente e dispensa-me de outros argumentos que a dimensão deste texto não comporta. Não bastava já que o modelo instituído de gestão das escolas tivesse deslocado os órgãos de direcção escolar para fora destas, ou seja, os tivesse deslocalizado para as estruturas concentradas e desconcentradas do Ministério  da Educação, independentemente das designações de Assembleia de Escola, de Conselho da Comunidade Educativa, ou de quaisquer outras. Agora, também a escolha dos mais centrais órgãos de gestão das escolas seria deslocada de cada escola para um Governo (seja regional ou nacional), configurando uma administração escolar duplamente atópica (quer em termos de direcção, quer em termos de processo de designação da gestão). Em suma, uma concepção de democracia insular, isolada da sociedade e das escolas. E mesmo assim ainda continua a haver quem insista em invocar a autonomia que as escolas, entretanto, teriam ganho.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 149
Ano 14, Outubro 2005

Autoria:

Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho

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