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O processo ou a sociedade meritocrática - II

Os leitores que tiveram a paciência de ler, neste mesmo local, a Página de Julho, conhecem o princípio desta história que hoje aqui concluímos e da qual cada um retirará extraordinários ensinamentos. Os que não leram o último jornal e não o têm à mão, podem conhecer o princípio da história, na Internet,  no endereço http://www.apagina.pt/arquivo/FichaDeAutor.asp?ID=359
Recordo que a nossa história tem como principal protagonista um escritor excêntrico, sendo que as mais altas esferas cometeram a imprudência de o deixar nas fileiras do sistema. Como deixámos perceber no mês passado «foi ele a estar na origem de um escandaloso assunto que subverteu os belos e singelos princípios da autoridade».
Um dia, um conhecido e respeitado escritor-general estava a passear por uma avenida da capital. Aproximando-se dele em sentido contrário vinha o excêntrico escritor-soldado de calças cor-de-laranja. O escritor-general lançou-lhe um olhar de menosprezo e aguardou que o soldado lhe fizesse continência. Repentinamente, notou no boné do magala a insígnia do posto mais alto, um pequeno escaravelho vermelho, que apenas os escritores-marechais tinham direito a usar. O respeito pela autoridade estava tão profundamente enquistado no escritor-general que, sem se deter a analisar a invulgar natureza da sua descoberta, imediatamente adoptou uma atitude do maior respeito e fez primeiro continência. Admirado, o escritor-magala retribuiu a saudação e, ao levar a mão à pala do boné, o escaravelho enorme que até então lá tinha estado pousado abriu as asas e fugiu.
Enraivecido pela humilhação sofrida, o escritor-general chamou imediatamente um crítico da ronda, que despojou o magala da caneta e o conduziu sob escolta à sala da guarda na Casa da Literatura.
O julgamento verificou-se no salão dos mármores do Palácio das Artes. Os juizes e outros dignitários sentaram-se atrás de uma grande mesa de mogno, as dragonas luzentes e as condecorações douradas reflectidas na sua superfície, escura e lisa como um espelho.
O escritor-magala excêntrico era acusado de usar ilegalmente insígnias a que não tinha direito no seu posto. Contudo, a sorte estava do seu lado. Na véspera do julgamento, durante uma reunião do Conselho para a Cultura, violentas críticas foram clamadas contra as atitudes formais com que os artistas estavam a ser tratados e o modo como se divulgava a arte. Podiam adivinhar-se ecos deste debate, quando, no dia seguinte, o crítico-escrito marechal se ergueu para falar, no julgamento.
«Por forma alguma devemos», proclamou, «adoptar uma atitude burocrática para este caso. A nossa missão é ir ao verdadeiro fundo deste assunto. Sem dúvida, o caso que ora julgamos concerne à violação das normas que, apesar de alguns erros, conduziram a nossa literatura a um florescimento sem precedentes. A questão que devemos pôr é, todavia, a seguinte: ? É o acusado um criminoso activo e consciente? Devemos mergulhar fundo na busca da resposta, devemos não só expor os efeitos mas também as respectivas causas. Consideremos primeiramente as circunstâncias que fizeram com que o acusado se encontre nesta lamentável posição. Quem o depravou, quem explorou a sua primitiva falta de consciência social? Que espécie de ambiente criativo podiam tê-lo trazido a esta crise? A quem devemos tornar extensiva a punição, a fim de prevenir casos semelhantes no futuro?
«Não, camaradas. Não é o acusado o principal responsável. Ele apenas foi o instrumento nas mãos de um escaravelho. Não pode haver qualquer espécie de dúvida que o escaravelho, motivado pelo ódio à nossa nova hierarquia, exasperado pelos conseguimentos do nosso sistema de critérios absolutamente precisos e pela organização perfeita da nossa associação... o escaravelho, movido por malévola intenção, pousou no boné do acusado, imitando a insígnia de marechal. Foi o escaravelho quem tentou subverter a nossa hierarquia. Que seja punida a mão e nunca o seu instrumento cego.»
O discurso foi saudado com profunda análise das verdadeiras raízes do mal. O escritor-magala foi reabilitado e organizou-se um libelo adequado contra o escaravelho. Um pelotão de críticos encontrou o escaravelho num jardim, pousado numa folha de lilás, conspirando. Ao compreender que tinha sido desmascarado, não ofereceu qualquer espécie de resistência.
O novo julgamento efectuou-se na mesma sala dos mármores. Todos os presentes tinham de esforçar a vista para ver a pequena mancha vermelha sobre a mesa brilhante.
Sob um pires de vidro, que o impedia de fugir, estava o escaravelho, calmo e impenitente do seu crime, conservando um silencio desdenhoso até ao fim.
A execução fez-se na aurora da manhã seguinte. Quatro volumes espessos e bem encadernados do último romance do escritor-marechal em literatura foram escolhidos como instrumento. Foram largados um a um da altura de um a dois metros. No relatório escreveu-se que o condenado não sofreu por muito tempo.
Quando o escritor-magala soube da sentença, chorou e pediu que deixassem o escaravelho em liberdade no jardim. Isto tornou-o mais uma vez suspeito de ter sido, pelo menos, cúmplice neste crime; a sua dedicação ao escaravelho foi considerada altamente reveladora.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Mrozeck
Escritor
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
Mrozeck
Escritor
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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