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Crianças, telemóveis e o desaparecimento da infância
A vida do século XXI está sendo invadida, saturada, por uma nova engenhoca eletrônica intrometida e barulhenta ? o telemóvel(1). Uma das importantes repercussões desta tecnologia nos atuais modos de vida pode ser observada no universo infantil, e há que se pensar nela.
Em 1984, no instigante livro O desaparecimento da infância, Neil Postman apresenta a polêmica hipótese do fim da infância. A argumentação central repousa na idéia de que as tecnologias têm desenhado e redesenhado as faces do mundo e da vida ao longo da história, sendo a infância uma de suas invenções. A concepção que temos hoje de infância ?  como uma fase da vida distinta daquela das pessoas adultas ? vai surgir na Renascença, em conseqüência da invenção, duzentos anos antes, no século XV, da prensa tipográfica. Ao longo desse período, a revolução promovida pela palavra impressa desencadeia novas exigências que vão estabelecer limites bem demarcados entre crianças e adultos, passando-se a admitir a infância como algo da ordem natural das coisas. Um exemplo disso é a alfabetização, que vai multiplicar as escolas e hierarquizar o conhecimento por idade. Assim como a idéia de infância delineou-se ao longo do surgimento e consolidação da Modernidade, produzida pela imprensa e pela cultura letrada, hoje, as novas tecnologias que possibilitam a comunicação instantânea centrada nas imagens em movimento estariam instaurando novas formas de vida e novos contornos do que chamamos humanidade. Desenvolvendo a hipótese de que os mundos social e simbólico estão subordinados às tecnologias, e delas emergem as formas de viver e estar no mundo, Postman procura demonstrar que a informação eletrônica estaria erodindo as fronteiras tão bem demarcadas entre adultos e crianças. A televisão ? que só requer habilidades simples como atenção e entendimento da fala, em geral adquiridos já no primeiro ano de vida ? seria a principal tecnologia a produzir tal efeito. Importa sublinhar que Postman desenvolveu suas hipóteses nos EUA dos anos oitenta, e que os vinte anos que nos separam de seu trabalho inicial parecem ter sido suficientes para aportar entre nós, latino-americanos e europeus, evidências contundentes da pertinência de seu pensamento. Basta habitar a cena contemporânea para nos darmos conta do crescente contingente de pessoas indiferenciadas no vestir, nos hábitos alimentares, nas diversões, no padrão lingüístico, nas opções de lazer, nas formas de erotismo, nas atitudes mentais e emocionais, no uso da violência. Parece que já habitamos um tempo de crianças adultas e de adultos infantis, e a mídia tem sido pródiga em nos mostrar isso. Mães que se vestem como as filhas, executivos e intelectuais fanáticos pelos heróis midiáticos infantis do momento (observem quantos pais circulam por aí envergando camisetas do Batman ou do Homem-Aranha), idosos que saltam de pára-quedas e garotas que circulam sozinhas nas madrugadas das grandes metrópoles, crianças que ensinam seus pais a operarem complexos equipamentos eletrônicos e adultos incapazes de administrar suas vidas são apenas alguns exemplos mostrados pelos programas de TV, pelas propagandas, pelas notícias, pelas telenovelas, etc. 
Pois bem, dados que temos coletado no Brasil e em Portugal, têm nos mostrado os telemóveis implicados nesta revolução cultural tendente, no século XXI, à indiferenciação das fases da vida. Crianças desde as bem pequenas e jovens de todas as idades têm encontrado no uso dos telemóveis um espaço de independência do mundo adulto, historicamente construído como aquele capaz de balizar e moldar o padrão de vida infantil, bem como seus caminhos em direção à tão decantada maioridade. Em conversas com crianças, mães e professoras, soubemos que a grande maioria das crianças (portuguesas e brasileiras) de todas as classes sociais portam telemóveis, dos mais simples aos mais avançados tecnologicamente. Observamos também que embora a justificativa mais difundida para possuir ou ofertar telemóveis seja a do contato entre pais e filhos, esta é a finalidade mais banal de sua utilização. A maior parte das crianças declara que não pode dispensá-los porque são a melhor forma de ter e manter amigos, com os quais trocam idéias, aconselham-se, desabafam e vivem seu cotidiano. Uma grande parte delas também declarou usar telemóveis para informar-se, jogar, assistir vídeos e ouvir suas bandas favoritas, completamente resguardados de qualquer interferência (ou influência!) dos adultos. A partir dos seis anos, os meninos já usam os telemóveis para abordar temas picantes, aumentando suas informações relativamente àquele espaço privativo dos adultos e interdito à infância moderna ? o da sexualidade.
Como se vê, por mais controvertidas que sejam, parece que as hipóteses de Postman se confirmam, e a tecnologia tem sido central na reconfiguração da vida e dos sentimentos nesta nova era. A infância como a fase da inocência, da dependência, da insegurança e da ignorância dos segredos do mundo e da vida parece que está a desaparecer. Tudo isso merece ser refletido não só por nós, educadores, mas por todas as pessoas que vêem, cada vez mais, as tecnologias embutidas em suas vidas.

Nota:
(1) Utilizamos o termo corrente em Portugal para designar o aparelho que, no Brasil, conhecemos como celular.

Referências bibliográficas

  • Postman, Neil. Tecnopólio ? a rendição da cultura à tecnologia. Trad. Reinaldo Guarany. São Paulo: Nobel, 1994.
  • O desaparecimento da infância. Trad. De Susana Carvalho e José de Melo. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.

  
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Marisa Vorraber Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil
Marisa Vorraber Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil

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