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Sucesso de morte
Jorge José era um escritor bem sucedido. Encontrara a fórmula perfeita de agradar ao grande e ao pequeno público. Escrevia histórias ?fatais como o destino?. No espaço de um ano conseguira publicar dois livros e todos eles esgotavam edições atrás de edições num fluxo incontinente de vendas que espantava a crítica, mas enriquecia estrondosamente a editora - de livros pagos pelos autores - onde Jorge José subsidiara a sua primeira obra.
?O fenómeno?, como o apelidavam os críticos, ganhara a veia literária por acaso numa tarde fatídica em que fora brutalmente atropelado quando atravessava a rua de olhos postos numa beleza loira que, no outro lado do passeio, esperava a mudança do sinal vermelho para os peões.
Seis meses no hospital. Vários tratamentos dolorosos. Muitas transfusões de sangue. E por fim a alta médica. Á qual imediatamente sucedeu a publicação da sua primeira obra: ?O Sono da Morte?. Escrito nas longas noites de insónia que passara no hospital. A pilha eléctrica, em formato de caneta, enfiada na boca para não incomodar os outros doentes e a folha pousada numa das pernas imobilizadas. Tudo sem a ajuda dos óculos. Que só pode usar passado um mês do acidente devido à fractura que sofrera na cana do nariz. E com uma persistência nunca vista pelo pessoal médico e de enfermagem.
O sucesso fora inesperado. A tal ponto que a editora conseguiu finalmente algum lucro e dispensou a sua carteira de clientes, composta por mais três escritores que pagavam para serem publicados. Embalado pelas vendas, Jorge José aproveitara para no meio ano seguinte editar ?Boleia para a Morte?, um segundo best-seller, com mais de trezentas e tal páginas. A critica caíra aos seus pés emocionada com ?a presença na obra da susceptibilidade de alguém cuja vida se encontra em perpétua convalescença?. E assim a fama e a fortuna de Jorge José aumentavam. Também a pressão do editor para que continuasse a escrever...
Jorge José costumava sentar-se à mesa da cozinha, com um bloco de apontamentos à frente e de mais não precisava para que a inspiração surgisse do nada. Foi ao receber uma mensagem no seu telemóvel que tivera a ideia para ?SMS Mortal?. Como bom sucessor dos dois anteriores, o livro continha todos os ingredientes do costume, o suspense, o drama e a morte do personagem principal ou de alguém próximo a ele. Tal como das outras vezes tão depressa foi a história pensada como foi escrita. Duas tardes bastaram para o enredo estar completo. Dois meses e tal para o livro estar nas prateleiras de todos os hipermercados.
Mas quando menos seria de esperar, o pior aconteceu. A crítica de repente mostrava-se enjoada do estilo fatal de Jorge José. Alguém escrevera numa revista da especialidade: ?o escritor doentio tarda em sair da ala hospitalar?. Outros parodiavam: ?no pico do Verão mais quente que alguma vez se fez sentir está a ser difícil aguentar um terceiro internamento?.
Certo é que a ironia abrira uma ferida de morte em Jorge José e fazia-o sentir-se verdadeiramente como um cadáver a quem o assassino dá mais um pontapé. Apesar do seu editor o aconselhar a retomar a escrita no Inverno, quiçá a altura mais propícia para o seu estilo literário, Jorge José estava decidido a inverter a situação. Ligou ao editor e prometeu: ?Vou tirar definitivamente a morte da minha vida!? Deixou então a mesa da cozinha e mudou o seu local de escrita para a esplanada da praia. O sol, o mar, eram de certeza óptimos inspiradores para uma mudança de tema.
Durante a época balnear ninguém ouviu mais falar de Jorge José que entretanto, para não ter de estar sempre a consumir na esplanada, alugara uma barraca e aproveitara para se queimar um pouco e disfarçar as cicatrizes do acidente. Três meses árduos de trabalho e Jorge José publicava ?Barraca Escaldante?, uma história de sexo e traição com um areal paradisíaco como cenário. Era Setembro. E escusado será dizer que o livro foi um sucesso.


  
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Edição:

N.º 147
Ano 14, Julho 2005

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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