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A crise existe mas não resulta de um Estado gordo

O tecido económico português é frágil e incapaz de tapar o frio que a nossa sociedade sofre há vários séculos. Houve erros graves de gestão. O maior, terá sido a privatização cega da economia e, a sua entrega à responsabilidade da classe empresarial que sabíamos ser pouco numerosa, de fracos capitais, sem vocação para a indústria, enfronhada no comércio e nos serviços, temerosa e de fraca formação profissional e cultural. Pelo seu lado, a classe política e jornalística engoliu sem mastigar as teorias neoliberais. Não pensa a nossa realidade, prefere o «Financial Times». Não cria, macaqueia. Despreza o papel do Estado. Não entende que o crescimento rápido dos Tigres Asiáticos se deve à intervenção forte do Estado na economia e não ao simples jogo das regras cegas do mercado. Neste cenário dilaceramo-nos. Não somos capazes de um desígnio nacional comum. Sem sonhos de futuro, desprezamo-nos uns aos outros com uma grande raiva ao presente.

Quando em 1991 o ex-primeiro ministro Cavaco Silva aprovou o novo regime de carreiras da função pública não estava louco nem com medo de enfrentar os funcionários. Sabia-se que as medidas então adoptadas continuavam a deixar os trabalhadores da administração pública portuguesa muito longe do nível de vida dos seus congéneres da União Europeia. Olhada a situação com o distanciamento que o tempo agora permite pode dizer-se que as medidas foram relativamente equilibradas. Deu-se um passo em frente sem ignorar a pouca capacidade de produzir riqueza que o país tinha naquele tempo.
O que correu mal? Foi o Estado que engordou em demasia? Não, o empresariado é que não cresceu como se esperava, antes definhou agarrado à teta de um Estado cada vez mais esquálido. O erro dos governos tem sido acreditarem que o empresariado português é capaz de se desenvolver autonomamente e à altura das necessidades económicas do país.
Todos sabemos ? embora alguns prefiram fazer de conta que não sabem ? que historicamente Portugal tem uma classe empresarial incipiente. Fraca em número, em saber, em meios económicos disponíveis. Além disso, por tradição, o nosso empresariado é avesso à indústria e a uma agricultura avançada. Seduzida pelo comércio e pelos serviços, salvo raras excepções, a burguesia nacional nunca foi manufactureira,  foi sempre de feira. A de maiores cabedais, por tradição, investe na banca, nos seguros e, agora, nas grandes superfícies comerciais. Os de menores posses ficam-se pela mercearia, o restaurante, a oficina, o tasco, os toldos de praia, o café manhoso, a oficina, a lojinha de shopping. É do que é capaz a famosa maleabilidade e adaptabilidade do empresariado português.
Quando os governos de Cavaco Silva, e os que se lhe seguiram, se lançaram na vertigem das privatizações, cometeram o erro de não terem em conta o país que somos. Não  deviam ter ignorado a fragilidade, e a necessidade de tempo para crescer, da nossa classe empresarial. Deviam ter percebido que a pouca gente interessada e o pouco capital disponível seriam absorvidos pelas privatizações. Nos últimos vinte anos os nossos empresários consumiram-se nestes negócios privatizadores, isto é, não criaram nada de novo, pior ainda, a indústria privatizada, em vez de ser reconstruída, foi levada à falência. Pujante ficaram só a banca, os seguros, algum comércio interno, isto é, algum terciário.
Os nossos empresários continuam à espera da privatização do que resta das funções do Estado. Não querem arriscar e criar, querem herdar. Não têm apetência por produzir um prego, mas desejam herdar o imobiliário nacional. Não produzem um penso, mas querem a gestão dos serviços de saúde. Não fabricam um lápis, mas querem gerir a educação. Serviços, serviços, serviços. Mas é com esta classe pobre, de baixa formação e sem vocação industrial que temos de contar. Uma classe que ainda não chega para assegurar mínimos de produção de riqueza que nos permitam viver com mínimos europeus de decência.
Não foi o nosso Estado que engordou nos últimos anos. O «mundo empresarial nacional» é que não cresceu. Por isso entendo que é necessário contrariar o discurso neoliberal dominante e reclamar, nos próximos anos, uma maior intervenção do Estado no desenvolvimento da nossa economia. Os empresários crescerão por arrastamento. O que é perigoso é ficarmos agarrados à moda neoliberal, acreditando em fetiches, incapazes de pensarmos o país que temos, esperando o milagre da retoma como quem espera que o sapinho de cigarro a arder na boca ganhe a energia que lhe permita ganhar a maratona.
Não é fácil inverter o pensamento dominante. Há um condicionamento oficioso da consciência dos portugueses, que considera as manifestações de vontade de viver melhor como reivindicações ilegítimas por serem, acusam, corporativas. Dizem que são ilegítimas as «corporações» dos trabalhadores. Mas não são ilegítimas as «corporações» patronais. As reivindicações dos lobbys dos interesses dominantes são apresentadas como parte da solução do problema. As reivindicações dos sindicatos como factores de estagnação social. Já as instituições da União Europeia (UE) são apresentadas como autoridades (ou divindades) inquestionáveis. O modelo social europeu deixou de ser sinónimo de progresso civilizacional, e passou à categoria de criação diabólica e fonte de todos os males.
A nossa sociedade está dominada pelos média e estes pelas corporações dos interesses dominantes. Os grandes meios de comunicação social já não são o que foram. Abandonaram a análise crítica e passaram à propaganda dos interesses. Grande parte do que nos dizem não é verdade. Há uma parte do que nos dizem que é uma «verdade» fabricada, isto é, é propaganda preparada. Estes meios são dominados pelos «Fast-Thinkers» ? em português «pensos rápidos» ? ou seja, por «jornalistas» e «comentadores» que escrevem de supetão, copiando-se uns aos outros, e reproduzindo o discurso da moda. O discurso jornalístico dominante em Portugal é actualmente liderado por estes «pensos rápidos». Eles são a voz do dono. São os porta-vozes dos interesses privados dominantes na sociedade. Estes «especialistas» são afectos às correntes neoliberais e ajudam a apresentar como «inevitáveis» e «corajosas» as medidas que empobrecem e humilham os trabalhadores.
É típico dos «pensos rápidos»: um inventa, outro repete, o terceiro acredita. É assim que alinham rapidamente parágrafos, espalham sem pudor a superficialidade e o embuste, num argumentário despido de factos e, quase sempre, ignorante. A recolha de informação adequada aos temas que tratam não lhes interessa. Chega-lhes como material de trabalho o preconceito, a paixão ideológica e o reconhecimento dos pares.
O actual Governo, ao contrário da imagem que vende, governa para obter as boas graças destas elites jornalística, tecnocrática e capitalista, esquecendo-se que, é normal, uma vez por outra, a opinião pública revoltar-se contra os seus (supostos) donos. Ninguém se admire se dentro de dois ou três anos esta direita disfarçada se partir em cacos, abrindo a porta a um longo reinado da direita assumida.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 147
Ano 14, Julho 2005

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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