Página  >  Edições  >  N.º 146  >  "Enigma" ou a (re)reescrita da história

"Enigma" ou a (re)reescrita da história

Antes de mais, o filme de Michael Apted não é nada de especial. Então porquê falar dele? Além da saída em DVD, parece-me ser uma tentativa honesta de reposição da verdade.
À primeira vista, ?Enigma?, de Michael Apted, não parece difícil de descodificar. Adaptação da novela de 1995 de Richard Harris ? um ?best-seller? no Reino Unido ? com argumento de Tom Stoppard, música de John Barry e produzido por entre outros por Mick Jagger, é a história de Tom Jericho, um génio da Matemática a trabalhar para os serviços secretos britânicos durante a II Guerra Mundial como descodificador. Quando o filme começa, Tom está a regressar ao trabalho, depois de várias semanas de interrupção devido a doença. Excesso de trabalho e um romance desastroso levaram-no a um esgotamento. Foi chamado num momento particularmente difícil. No princípio da guerra, com a ajuda da espionagem polaca e fortuita, captura de algumas máquinas de código e dos seus livros, Tom e os seus colegas desenvolveram estratégias para decifrar o código alemão ?Enigma?, mas a versão desse código usado pela marinha alemã foi modificada. A não ser que o novo código seja decifrado rapidamente, um comboio será afundado no Atlântico Norte por dezenas de submarinos alemães.
O realizador Michael Apted conseguiu reconstituir o mundo familiar do tempo da guerra, mulheres com vestidos às flores e homens vestidos de cinzento. Como Harris descreve no seu livro, Bletcheley Park - a sede dos serviços de descodificação - é ?um paradigma do sistema de classes inglês?. A classe trabalhadora, os interceptores de mensagens, nada sabe sobre Enigma; as mulheres, quaisquer que sejam as suas capacidades, trabalham em coisas menores. Hester queixa-se várias vezes do seu trabalho como secretária quando no teste de recrutamento fez melhor que a esmagadora maioria dos homens que agora estão em posições mais elevadas. Há ainda Blimps, um pomposo militar, que trata pessimamente os descodificadores, os verdadeiros heróis de toda a situação.
Durante a guerra, a opinião pública britânica pouco sabia sobre criptógrafos , um núcleo obviamente fechado de etimologistas, lexicógrafos, matemáticos e engenheiros vivendo em reclusão em Home Counties. Nas suas memórias ?Between Silk and Cyanide: A Codemaker?s War 1941-1945?, Les Marks, um descodificador dos Serviços de Operações Especiais (SOE) e posteriormente argumentista do filme de Michael Powell ?Peeping Tom?(1960), descreve um episódio em que os seus vizinhos - obviamente desconhecedores do seu papel durante a guerra - lhe enviaram um envelope com uma pena branca e a mensagem ?cobarde?. Como George Orwell fala no seu ensaio ?The Lion and the Unicorn?, os intelectuais eram extremamente suspeitos nos anos 40 em Inglaterra (só?). Por isso os professores e jogadores de xadrez que se reuniam em Bletcheley Park dificilmente eram vistos como heróis. Tão indiferente como as altas patentes com as tentativas de descobrir o código alemão durante a guerra, o público negligenciou o seu trabalho mesmo vários anos após o final da guerra.
?Enigma? é tanto sobre a nostalgia e identidade nacional como sobre a vitória militar. Apted é surpreendentemente chauvinista quando discute os anos da guerra: ?Sempre amei a II Guerra Mundial:.. Sinto-me orgulhoso em ser britânico?, declarou o realizador, que vive em Los Angeles na altura da estreia do filme,? Foi um momento único de espantoso heroísmo, quando os britânicos se opuseram aos alemães, aos Nazis. Se viajarmos pela Europa e olharmos aquelas cidades maravilhosas e pensarmos ?Porque é que são tão bonitas??, apercebemo-nos que não foram bombardeadas porque os países desistiram... a maioria das guerras são sujas - a do Vietname, a do Iraque, a da Coreia, a I Guerra Mundial - mas esta até parece limpa?. Estes sentimentos podem explicar porque ?Enigma? parece tão fora de moda.
Uma das razões porque os britânicos, diz-se, são tão eficientes a descodificar mensagens inimigas é porque foram treinados durante toda a vida - devido ao sistema de classes - a perceber sinais escondidos. As tensões sociais são óbvias em ?Enigma?, especialmente durante os encontros tempestuosos entre Jericho e o seu oficial superior Wigram (Jeremy Northam num desempenho aparentemente modelado por Cary Grant em ?Notorious?, de Hitchcock).
È fácil acusar Apted ? como o fez alguma imprensa inglesa - de ter feito uma anacrónica homenagem ao tributo inglês durante a guerra e ao cinema inglês da época, mas, como as suas personagens, ?Enigma? é mais difícil de decifrar do que tal veredicto implica. E, quanto mais não fosse, servia de lição para os que se deixaram enganar pela reescrita da História feita por ?U-571?, esse inefável filme feito por Hollywood.

PS -1 A não perder na Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema  a exposição ?Emile Cohl e o nascimento do Cinema de Animação?.
PS - 2 Este ano no Festival de Curtas-Metragens de Vila do Conde, em Julho, uma retrospectiva centralizada na mais recente produção japonesa. Obras contemporâneas, inéditas em Portugal, curtas e longas metragens, instalações vídeo, vídeoclips e wokshops. Sob o lema ?Made in Japan? a presença ainda de 3 autores Ishii Katsuhito, autor entre outras da sequência de animação de ?Kill Bill 1?, Sei Hishikawa, que dirigirá o workshop dirigido a estudantes do ensino superior, e Ishii Sogo.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 146
Ano 14, Junho 2005

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo