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A utopia não é uma característica da juventude actual

OS VALORES E A JUVENTUDE PORTUGUESA EM ENTREVISTA

O que é ser jovem no mundo actual? De que forma encaram os jovens a aprendizagem de valores? E a escola: como os transmite? Estas são algumas das questões abordadas na entrevista que a PÁGINA conduziu junto de Carla Cibele Figueiredo, professora da Escola Superior de Educação de Setúbal.
Licenciada em Psicologia e mestre em Relações Interculturais, tendo em preparação o doutoramento sobre ?Cidadania e Associativismo Parental? (Relação Escola Família)?, na Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação da Universidade de Lisboa.
Carla Cibele é, desde 1997, docente do ensino superior, primeiro no Instituto Superior de Psicologia Aplicada e actualmente na Escola Superior de Educação de Setúbal, onde lecciona, entre outras, a disciplina de Comunicação e Expressão, mais concretamente um módulo de Relações Interpessoais. A ?Juventude?, enquanto campo de análise e de intervenção, tem atravessado o seu percurso e os lugares de construção profissional.
Entre 1991 e 1997 desenvolveu, no âmbito do Instituto de Inovação Educacional projectos de Investigação e de formação de professores, nas áreas da Formação Pessoal e Social, onde se incluem a Educação para os Valores e a Educação para a Cidadania.
Ao nível da formação destaca-se a colaboração na elaboração e dinamização da Pós- Graduação em Educação para a Cidadania no Instituto Superior de Psicologia Aplicada, na sequência de um conjunto de trabalhos e projectos que tem vindo a desenvolver nesta área, alguns no Ministério da Educação e outros em autarquias e outras instituições.
Entre os livros, artigos e comunicações efectuadas, destaque para a monografia virtual "Os jovens portugueses e os valores", de 2003, publicada pela Organizacion de Estados Iberoamericanos, que pode ser consultada em www.campus-oei.org/valores/monografias/monografias02/index.htm

O que é ser jovem no mundo actual?

De uma forma simples, ser jovem é pertencer a uma classe sociológica situada entre os 15 e os 29 anos e beneficiar de um estatuto, conferido socialmente, através do qual se aceita que o jovem cumpra uma etapa de exploração de si mesmo, uma espécie de moratória que lhe dá o direito a viver este período de crise e a prolongar a entrada na vida adulta até àquele limite etário.
Este estatuto, que até há uns anos não estava tão claramente definido, implicou a implementação de um conjunto de políticas e de direitos orientados exclusivamente para esta faixa etária, o que se por um lado traz algumas vantagens ? nomeadamente a menor pressão social para a entrada na vida adulta ?, por outro acarreta desvantagens como o prolongamento de um certo estado de infantilidade, da dependência dos pais e da não resolução dessa crise.

Não estará essa crise de entrada na vida adulta relacionada com factores externos que condicionam os jovens nessa moratória, como o desemprego?

 O facto de se prolongar o período de juventude será, de certa forma, uma consequência disso mesmo, mas também se deve admitir que a procura do primeiro emprego e a entrada na vida adulta foram, desde sempre, questões problemáticas para qualquer jovem. Por outro lado, também se pode pensar que a própria sociedade se tornou mais tolerante e procurou idealizar a juventude numa perspectiva quase romântica, não querendo colocar limites a esse estado latente, que, no entanto, existem.

É essa marca cultural que estabelece a principal diferença entre os jovens ocidentais e os jovens de outros continentes?

Sim, é uma marca muito própria das sociedades ocidentais e está relacionada com outros factores, nomeadamente com o prolongamento da escolaridade obrigatória. Nas sociedades onde este período de escolarização não é tão longo, em média de seis anos, os jovens frequentam a escola, no máximo, até aos quinze, dezasseis anos.
Desta forma, os jovens africanos, sul-americanos ou asiáticos vêm-se limitados no seu período de busca interior, sendo-lhes exigido que se sustentem a si próprios ou que contribuam economicamente para o sustento da família após esta fase transitória.
Ser-se jovem equivale sempre a um período de desenvolvimento que comporta certos desafios, como o de construir uma identidade pessoal, sexual e de fazer escolhas, que são semelhantes em todas as culturas. O que difere é o contexto em que isso acontece.

Os jovens do século XXI serão assim tão diferentes daqueles que os antecederam?

Embora confrontados com desafios semelhantes, a maneira como os jovens os vivem e os encaram na actualidade são muito diferentes. Um dos aspectos mais notórios dessa diferença é a forma como lidam com essa crise própria da juventude.
Assim, se há umas décadas essa energia era dirigida no sentido de se interrogar a si mesmo mas sobretudo de questionar a sociedade, naquele que foi um fenómeno típico dos anos sessenta, hoje em dia essa energia é canalizada pela própria sociedade, atenuando esse confronto ao legitimar a juventude e ao dar-lhe um estatuto próprio. A própria sociedade de consumo e as modas que a ela estão associadas é uma maneira de transformar a revolta própria da crise juvenil numa forma de inclusão.
As instituições sociais, como a escola e os partidos políticos, que, de algum modo, acabam por gerir as políticas de juventude, contribuem igualmente para atenuar esse confronto. Um fenómeno curioso que ilustra o que acabo de dizer é o facto de muitas autarquias patrocinarem os chamados concursos de bandas de garagem, que até há uns anos tinham um carácter eminentemente subversivo.

A escola vista como uma garantia de emprego

De acordo com José Manuel Pureza, professor associado do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, uma das características da juventude portuguesa é o ?realismo? com que encara a vida, ideia que, de acordo com este autor, se traduz numa forma de ?reprodução social indicadora de um certo conformismo em relação à ordem social e económica vigente?. Concorda com esta ideia?

Sim. Aliás, gostaria de citar um excerto de um trabalho de uma aluna minha que, de algum modo, reflecte essa postura: ?Na sociedade actual as pessoas valorizam cada vez mais a sua imagem. Não as posso censurar porque faço o mesmo. Sei que não é correcto, mas a imagem é o que conta. Podemos mentir e dizer que o que interessa é o interior de cada um, mas isso a mim não me diz nada. Não sou fútil, sou realista. São realmente poucas as pessoas que não se importam com a imagem?.
O que esta jovem tenta dizer é que a sociedade é assim mesmo e que pouco se pode fazer para modificá-la, mostrando, de alguma forma, que a utopia não é uma característica da juventude actual, e que as pequenas transformações que se tentam implementar são efectuadas à escala individual.
Porém, se podemos afirmar que, no seu conjunto, estes jovens não sonham muito e olham para as instituições sociais e para a sua margem de manobra com enorme realismo, também é verdade que existem bolsas de um enorme potencial e riqueza, que, no entanto, funcionam em contraciclo.

O conformismo referido por aquele autor parece traduzir-se também nos altos valores de satisfação relativamente à escola encontrados em dois estudos de âmbito nacional, intitulados ?Jovens Portugueses de Hoje?, conduzidos por Manuel Villaverde Cabral e José Machado Pais, em 1987 e 1997. Isto, porque esses altos níveis de satisfação contrastam com os elevados índices de insucesso e de abandono escolar. Como se explica esta contradição?

Eu diria que é mais um contraste do que propriamente uma contradição. Penso que a explicação pode ser encontrada no facto de a escola já ter entrado de tal forma na vida de cada um que os jovens já não idealizam a educação sem ela. E eu constato isso mesmo na experiência quotidiana com os meus alunos. Há um livro de Ivan Illich, intitulado ?Educação sem escola?, que eu costumo dar a ler aos meus alunos. E é curioso verificar que quando eles o comentam não concebem como é possível alguém imaginar a vida sem a presença da instituição escolar?

Não se imagina, portanto, a possibilidade de uma educação informal?

Exactamente. O peso da educação formal é hoje muito maior e mais reconhecido do que o da educação informal. Ler um livro, ir ao cinema ou participar num debate não é visto como um acto de aprendizagem. Estamos numa sociedade onde todo o saber reside e se legitima na escola. E quando perguntamos aos jovens a razão que os leva a frequentá-la, uma das respostas mais comuns é "para arranjar um bom emprego?. Ou seja, hoje a escola não é tanto valorizada enquanto instituição de saber, onde se pode conhecer e aprender mais, mas como algo que irá ter efeito na vida futura e permitir ganhar mais dinheiro. E isto é terrível para a escola, porque já nem sequer se questiona o seu valor.

Talvez porque a exclusão do mercado de trabalho signifique, por consequência, a exclusão do mercado de consumo?

Precisamente. Os jovens consideram que a escola funciona e que é um valor seguro, e quando não conseguem ter sucesso acabam por atribuir a culpa a eles próprios e não ao sistema ou à instituição social, uma posição extremamente conformista que não põe em causa a escola ou o seu funcionamento. Ou seja, é uma posição contrastante mas igualmente conformista. Há três décadas teríamos provavelmente os alunos a dizer que era necessário aprender de outra forma ou que queriam outros professores.
Por outro lado, eu diria que isso se poderá também explicar em parte pelo próprio processo histórico do trabalho. Antes da revolução industrial, o trabalho constituía um mero meio de sustento. Só a partir dessa altura, e sobretudo a partir do século XX, o trabalho passa a ser visto como um meio de dignificação social e de realização pessoal. Porém, este discurso, característico das gerações mais velhas, está a sofrer uma erosão, visível na forma como os jovens vêem hoje o trabalho principalmente como uma contrapartida económica.

Não estará esse fascínio pelo consumo relacionado em parte com o clima de euforia económica que vivemos desde a adesão de Portugal à União Europeia?

Nós vivemos as últimas duas décadas a uma velocidade maior e com mais intensidade do que a maioria dos países europeus, que tiveram 40 ou 50 anos para sustentar o seu desenvolvimento. Apesar dessa diferença, não conheço estudos que me permitam afirmar que esta é uma característica exclusiva dos jovens portugueses e que a ética da sociedade de consumo não fascine igualmente os jovens ingleses ou suecos. Até porque os efeitos da globalização acabam por surtir efeitos em praticamente todas as sociedades e o fascínio por usar a último objecto da moda é um fenómeno globalizado.

A escola e os valores

Como definiria o conceito de valor?

É difícil definir esse conceito de uma forma simplista, mas pode dizer-se que os valores correspondem a princípios orientadores de vida e constituem-se como mediadores para a acção, sendo esperado que cada indivíduo aja de acordo com eles. Porém, ao longo do nosso percurso individual somos sujeitos a uma permanente reconstrução pessoal e, consequentemente, vamos redefinindo esses mesmos valores.

De uma forma geral, como vêem os alunos portugueses a escola?

De acordo com os resultados do inquérito nacional aos jovens, a maioria afirma gostar da escola e vê-a sobretudo como um espaço de socialização ? é importante recordar que a filiação aos pares é um marco decisivo da juventude, representando um corte com a família enquanto única unidade grupal e relacional ? e como garantia de futuro.
Porém, a escola não é referida no seu discurso como uma instituição que os seduza para o conhecimento e para o saber, ou seja, dir-se-ia que ela se banalizou aos olhos dos jovens. Nestas circunstâncias, quase dá vontade de perguntar se, após tantos anos a lutar pela universalização e pela igualdade de acesso, a escola não seria mais valorizada sendo paga.

Pensa que a actual geração respeita mais os valores de igualdade do género?

O inquérito realizado em 1997 diz-nos que os jovens têm consciência da igualdade de direitos entre homens e mulheres, e isso é patente do ponto de vista dos valores que eles expressam. No entanto, embora seja de assinalar que este é um dos aspectos que mais mudou no conjunto das atitudes, quando verificamos a consonância dos valores com as respectivas acções vemos que, na realidade, eles nem sempre correspondem à prática.
Referiu-se ao longo desta entrevista que os jovens são mais consumistas, mais fascinados, que não se deslumbram pelo saber, mas também são mais tolerantes, aceitam melhor as diferenças e as alternativas de vida, como a homossexualidade, ou práticas como o aborto, do que as gerações anteriores.
Porém, mais uma vez a lógica do conformismo parece estar presente, já que uma parte significativa deles admite que, apesar de tudo, é melhor ser-se homem porque isso equivale a ter mais direitos e um estatuto mais visível. Além disso, as mudanças sociais são vistas como uma consequência que decorre do passar do tempo e não como uma transformação pela qual é necessário lutar.

De que forma encara a escola o ensino de valores?

Durante muito tempo a escola limitou-se a instruir, recusando uma função educativa mais vasta. Depois percebeu-se que a relação professor-aluno não é uma mera correia de transmissão de aprendizagens e começou a pedir-se à escola, enquanto única instituição com peso suficiente para o fazer, que interviesse num número crescente de áreas de educação social e como resposta às necessidades de integração dos jovens.
Porém, atingiu-se um ponto de ruptura, já que nem a escola nem os professores conseguem dar resposta a tudo e andam perdidos entre tantas solicitações. Neste sentido, receio que a escola possa voltar ao passado, à sua função meramente instrutora,
A formação cívica funciona nas escolas desde há três, quatro anos e é um espaço onde os alunos podem falar sobre si próprios e questionarem inúmeros aspectos da sociedade que os rodeia. Diz-se, cada vez mais frequentemente, que os alunos não sabem matemática e ciências, mas o facto é que eles sabem igualmente pouco sobre as instituições sociais e sobre o seu funcionamento.
Perrenoud refere num dos seus livros que as pessoas se preocupam com o facto de os alunos saírem hoje da escola sem saber matemática, questionando-se se isso  será  mais grave do que saírem dela com ideais racistas. De facto, o que é mais grave e pode causar maiores danos sociais?
O problema é que não está a conseguir-se ter êxito com esta disciplina. Partindo da investigação que tenho realizado junto de professores, verifico que existe uma grande dificuldade em ter um espaço destes a funcionar sem que os próprios alunos o desvalorizem e o achem uma ?seca?. Julgo que os professores entenderam o espaço de educação cívica como se de uma aula de moral se tratasse, mas isso não é educar para os valores.

 Qual é a alternativa? E que tipo de valores ensinar?

Eu considero que seria preferível apostar e reforçar os espaços de associativismo juvenil no interior da escola, onde os jovens pudessem trabalhar na prática sobre pequenos projectos, porque aprende-se mais sobre os valores quando se tem oportunidade de participação social, quando a aprendizagem não assenta no discurso teórico mas num discurso prático.
Depois, e partindo igualmente dos resultados da minha investigação, considero  igualmente importante apostar naquilo que o professor ensina sem se dar conta, porque, aparentemente, tem mais força junto dos jovens não tanto o que este lhe tenta transmitir em termos de valores, mas aquilo que eles próprios são. Ou seja, se um professor explicita um determinado conjunto de afirmações mas na avaliação não é capaz de clarificar de que forma os avaliou nem porquê, o aluno apercebe-se dessa contradição.
Esta enorme dissonância entre o que o adulto diz e o que o adulto faz, entre o modelo de sociedade que ele propõe e o modelo pedagógico que põe em prática no microcosmos da sala de aula, em especial a importância que ele dá à palavra do aluno, tudo isto ensina em termos de valores.

Como se explica que haja uma tão fraca participação associativa nas escolas, principalmente tendo em conta a nossa tão recente experiência democrática?

Para além das razões que apresentei no início da entrevista, perpassa a ideia no inquérito aos jovens de que tudo está aparentemente feito, e essa é também uma característica dos adultos. No entanto, apesar de o associativismo tradicional estar a esmorecer, nascem novas formas de associativismo juvenil, nomeadamente através das novas redes de partilha de informação. Tudo isso está a eclodir e tem um enorme potencial.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 146
Ano 14, Junho 2005

Autoria:

Carla Cibele Figueiredo
Professora
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Carla Cibele Figueiredo
Professora
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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