O Estádio Nacional foi uma grande obra do Estado Novo. Porém, não resolveu nem podia resolver o problema do desporto em Portugal. Por cá, também são muitas as obras da proclamada ?Madeira Nova?, só que o tecido social continua esfarrapado. Tal como ontem, gente anónima e embriagada pela palavra, pelo espectáculo e pela ilusão deste circo, agita bandeiras, ovaciona de forma delirante, espantosa, única e continua a dar vivas ?por teres cumprido a tua promessa?. Até quando, gentes da minha terra?
Salazar e outros confrades da época que utilizaram a juventude para os seus desígnios, também desfrutaram de milhares num estádio, todos muito alinhadinhos, saltitando ou deambulando frente aos seus olhos, brindando o camarote e as bancadas da ignorância com desfiles, acrobacias e música. Em Portugal, narra-nos o Prof. José Esteves, autor de O Desporto e as Estruturas Sociais, que a 10 de Junho de 1944 foi inaugurado o Estádio Nacional prometido por Salazar. Recorda que 50.000 encheram o Estádio e presenciaram demonstrações de ginástica através de 3.600 rapazes e 300 raparigas; viram um desfile de milhares de desportistas; ouviram um curto e significativo discurso de agradecimento a Salazar e cantaram, em uníssono, o Hino Nacional. Do discurso do aluno do ex-INEF sobressai a seguinte passagem:
Salazar! Devemos-te a esperança! Devemos-te a paz! Devemos-te o presente! Mas a partir de hoje a nossa dívida tornou-se maior: Devemos-te a certeza! Devemos-te o futuro! Em nome de todos nós! Em nome de todos aqueles que hão-de vir depois de nós, mais fortes e mais saudáveis! Bem hajas, Salazar, por teres cumprido a tua promessa! Obrigado pelos séculos fora! Obrigado para sempre! Viva Salazar! Viva Portugal!
Doida de entusiasmo, revela José Esteves, (pág. 149) ?a multidão ergueu-se, voltada para a tribuna, às palmas e aos vivas, acenando com chapéus, agitando bandeiras, numa ovação verdadeiramente delirante, espantosa, única! (...) O jornal ?Mundo Desportivo? até referiu numa das suas edições: O primeiro desportista de Portugal é Salazar?. Ora bem, há dias, por ocasião da festa do desporto escolar madeirense, que obriga a uma pausa lectiva de três dias para 28.000 alunos, enquanto, dizem, quatro milhares competem, acompanhei as declarações políticas, os cochichos dos colegas professores, a lengalenga da Comunicação Social distante de qualquer análise, uma delas que narrava a ?emoção? do Presidente do Governo Regional, talvez, digo eu, de lágrima no canto do olho perante um estádio a abarrotar e pleno de efeitos de luz, som e cor. Porque não vou nas aparências dei comigo a cruzar leituras, imbuído do desejo de compreender melhor os contextos políticos e as manifestações de agora no quadro de um processo educativo sustentável. Conclusão rápida: permanece a mentira naquilo que, para mim, é essencial, isto é, a festa tornada rotina anual para gáudio político de uns quantos, passados trinta anos, não deu lugar à festa desportiva tornada rotina educativa curricular diária. É o foguete multicolor e extasiante que rebenta uma vez por ano, construído, é certo, com o carinho e sacrifício de um grupo de professores, mas que não traduz, por ausência de uma política educativa global e específica correcta, numa manifestação sustentável e portadora de futuro. É o erro repetido até à exaustão, anualmente pintado de fresco, mas que desemboca no já conhecido: numa cultura desportiva de café ou taberna, numa baixíssima taxa de participação desportiva, na manutenção de uma Educação Física ultrapassada, bafienta e em perda de credibilidade social, em escolas à míngua de meios e de projectos transformadores, num desporto na escola faz-de-conta e inexpressivo, em centenas de continentais e de estrangeiros nas equipas regionais e em milhões anuais de euros para manter um sistema em rotura financeira. O desporto só pode ser analisado no conjunto de todos os sectores, áreas sociais e contextos políticos. Diz José Esteves: ?(...) o que há de característico e fundamental no desporto é, justamente, o que define e caracteriza a sociedade em que se realiza?. Ora, em 1944, o autor do discurso falava de ?paz?, hoje, por aqui, o hino político-partidário da força maioritária grita, em incoerentes e desmesurados decibéis, ?paz, pão, povo e liberdade?; o discurso de então sublinhava a certeza de um futuro melhor ?para os que hão-de vir depois de nós? e foi o que se viu, pois Salazar é evidente que não foi a ?certeza? nem foi o ?futuro? de uma Educação melhor. Foi apenas um político preocupado com a manutenção do sistema. Exactamente como hoje acontece. Se, ontem, Salazar foi o mentor, encenador e actor da estrutura política e social, hoje, por estas bandas, na génese, vive-se uma versão doce, ?raffiné?, como já foi dito, mas em tudo semelhante. Estado Novo e Madeira Nova: que venha o diabo e escolha. Pelo menos no que à Educação diz respeito. Por isso, lamento, tal como ontem, que gente anónima e embriagada pela palavra, pelo espectáculo e pela ilusão do circo, agite bandeiras, ovacione de forma delirante e continue a dar vivas ?por teres cumprido a tua promessa?. Até quando, gentes da minha terra?
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