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O Estado Português não está gordo, gorda está a classe empresarial

Para pôr os ursos a dançar no circo, o domador prepara-os, ao ritmo da música, batendo-lhes com um pau coberto de espinhos. Se dançarem correctamente, o domador deixa de lhes bater e dá-lhes comida. De contrário, a tortura continua, e à noite os ursos voltam para as jaula de barriga vazia. Por medo, medo das pancadas e da fome, os ursos dançam. Do ponto de vista do domador isto é bom senso. Do ponto de vista do animal, é sobrevivência.
É assim que o povo português tem vindo a ser domesticado pela sua classe dominante. Bater-nos-ão até nos convencerem que viver na ignorância e na miséria, aplaudindo e reverenciando os que dominam a economia do país, é um dever patriótico e nacional. Alguns, já dançam.

Acredito que a maioria dos portugueses esteja farta do discurso catastrofista sobre o presente e o futuro do país. Um grupo de pessoas, quase todos homens, que ao longo destes últimos trinta anos conduziram a política económica do país e se revezaram no governo do Estado e nos conselhos de administração das empresas públicas e privadas, teima em massacrar-nos, discorrendo diariamente, sobre a necessidade de desmantelar o Estado e de reduzir à miséria os portugueses que, para viver, só têm a sua força de trabalho.  Convém lembrar que os agentes deste discurso público auferem em Portugal rendimentos superiores aos dos seus congéneres do resto da Europa. Deve ser esse conforto que lhes dá a energia para reclamar para o povo, sacrifícios atrás de sacrifícios.
Falam como se o povo tivesse culpa da sua incompetência política e da má gestão das empresas que administram. Como se o mais fraco dos funcionários públicos fosse o responsável pelo descaminho das finanças nacionais.
Portugal tem um problema histórico. Desde os primeiros descobrimentos que abraçou o comércio, os «serviços» e abandonou a indústria. São vários séculos de críticas e de lamentos por não termos nem burguesia, nem vocação e capacidade de produção industrial.
A nobreza portuguesa, a partir do século XVI, assentou arraiais na corte. Desde então passou a classe dependente do poder central e a viver do monopólio do comércio colonial então nas mãos do rei. Ficámos com uma espécie de nobres-comerciantes-dependentes. Por seu lado, séculos mais tarde, à medida que a burguesia portuguesa foi aparecendo, ela não foi capaz de se assumir como burguesia à moda europeia, mas preferiu ser uma espécie de nobreza à portuguesa. Ainda estamos nessa onda. Foram-se os duques e os marqueses, mas ficaram, primeiro os novos condes e bacharéis, depois os comendadores, engenheiros, doutores e professores.(1) O pequeno Portugal, situado na periferia da Europa, aprendeu a viver do que vem de fora.  Desde os descobrimentos, que as classes dominantes vivem à mesa do orçamento. Sustentaram-se primeiro  da Índia, depois do Brasil, mais tarde de África e recentemente da União Europeia.
O povo português, só muito recentemente, por breves momentos e contra a vontade da maioria dos privilegiados, foi tido por existente. Nalguns momentos das décadas de oitenta e noventa, caíram da mesa dos ricos algumas migalhas para o povo. Alguma preocupação com a sua saúde, educação e segurança social. Pensões de reforma miseráveis? migalhas. Mas é contra este «esbanjamento» que agora se levanta a voz dos notáveis do país.
Diz o discurso dominante que «o Estado está gordo».(2) Que «o Estado precisa de emagrecer». Ora a mim, parece-me que o nosso Estado está magro como magros andamos todos nós que trabalhamos, a troco dos salários mais miseráveis praticados na União Europeia.
O Estado Português está gordo? Se estivesse os portugueses eram europeus com melhores salários, melhor nível de vida, saúde, justiça, educação e protecção social, mas a realidade é precisamente o contrário. Acontece sim que o país produz pouca riqueza e que a nossa classe empresarial, que nos últimos vinte anos chamou a si o exclusivo das actividades produtivas e esvaziou o Estado de todo o poder económico, se mostra incapaz de produzir bens transaccionáveis. Pesa a velha herança. Os nossos empresários são meros comerciantes incapazes de encarar a indústria e a inovação.
A pouca indústria que temos por iniciativa de empresários nacionais ? hoje quase toda falida ? foi uma actividade criada como negociata de ocasião. Construída com base na «esperteza saloia»(3) e no incumprimento dos deveres para com os trabalhadores e o Estado. Nas mãos destes empresários Portugal é uma comunidade condenada a um destino fraudulento e a ser um estado de delinquência e não um Estado de Direito. Como já foi dito, «isto [continua a ser] não um país mas um sítio mal frequentado». Portugal convive com a porcaria há séculos e o mais que se fez foi varrer o lixo para debaixo de um tapete, que entretanto se gastou.
A exigência de emagrecer o Estado, corresponde à lógica de investimento e de negócio dos nossos «empresários». Eles querem lucro fácil, mais comércio e mais serviços. Eles são incapazes de produzir de forma competitiva laranjas, alfinetes ou uma colher de pau. Preferem importar, embalar, rotular e vender. E é esta cultura de comerciante que os faz ter apetência por entrar no comércio dos bens que ainda permanecem nas mãos do Estado. Não se dispõem a produzir uma laranja, mas reclamam mais grandes superfícies. Não arriscam produzir um pente, mas querem alargar os serviços da banca e dos seguros obrigatórios. Não investem na produção de um penso, mas desejam o negócio da gestão da saúde. Não se interessam pela produção de um lápis, mas desejam a privatização e o comércio da educação? O Estado ao seu dispor é a única oportunidade de negócio que são capazes de encarar.
Naturalmente que os problemas do país não se esgotam na fraqueza da nossa classe empresarial. Temos outros problemas, especificamente nossos, e partilhamos outros com o resto do mundo. Mas não deixa de ser irritante este discurso pessimista, redutor, mesquinho, incompetente, encerrado na quezília nacional, onde os intervenientes ? gordos e bem instalados na vida   ? procuram mais o brilharete da palavra e da frase, a candidatura ao lugar apetecido, do que a resolução de qualquer problema. Nesta terra de pobres e de mal pagos, ofende-nos este discurso que faz passar a mensagem de que a economia vai mal porque os trabalhadores, os reformados e os famintos têm demasiados benefícios.
O Estado Português não está gordo, anda é pobre e mal governado. Gordos, correndo o risco de enfarte, andam os nossos economistas-administradores-empresários. Não seria mau se perdessem alguma gordura e contribuíssem para o desenvolvimento da actividade industrial do país, para o aumento da riqueza disponível e para a superação de uma economia dependente, quase só, do comércio e dos serviços. Não basta importar para vender cá dentro. É preciso produzir para vender lá fora evitando importar.
Olhando para a sociedade que ainda somos, temo que, por enquanto, pouco se possa contar com a classe empresarial que temos. Talvez se descubra que o Estado ainda tem de deitar mão à economia. Talvez ele não precise de emagrecer e enfraquecer. Talvez precise de ganhar músculo e energia. Talvez seja preciso formar e educar uma classe de empresários a sério.

Notas:
1) Repare-se no desempenho económico dos portugueses nas colónias, nada de indústria e só comércio. Não se esqueçam os resquícios medievais que sobrevivem, por exemplo, nas nossas universidades. Atente-se na importância que o mercado, entre nós, continua a dar aos títulos académicos em vez do saber fazer. Não podemos esquecer os nossos respeitáveis Professores, o antigo e o novo Marcelo, Cavaco Silva, Adriano Moreira, Freitas do Amaral? Duques outrora Professores agora.
2) Para justificar a tese da gordura comparam os gastos de Portugal com os de outros países europeus em função do PIB. Escondem que o nosso PIB, em 2004, representava apenas 63,8 por cento da média da UE dos 15. Quando dizemos que gastamos 7 por cento do PIB em educação isso corresponde, em euros, a 5 por cento do PIB da média europeia.
3) Chamam a esta esperteza saloia a iniciativa, o espirito criativo, a maleabilidade e a capacidade de adaptação dos portugueses.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 146
Ano 14, Junho 2005

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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