Página  >  Edições  >  N.º 145  >  Mário

Mário

Numa sala quase vazia observava de olhos vazios três alunas de cursos diferentes que iam respondendo às perguntas do exame. ?Isto está a morrer?, ocorreu-lhe. Setembro, sexta-feira, um exame às 9h00m, o dia pardacento e friote. Imaginava respostas sobre ?Rosseau?, estando ?Rousseau? escrito no teste. Era sempre assim, quando falavam de Sócrates misturado com Paulo Freire. Para que queriam que investigasse e publicasse? Como de costume chegara a esse edifício onde não trabalhava muitas horas, depois de uma luta. Para se levantar, até se sentir acordado, mais tarde já na rua. Um camionista barrava a saída do seu carro. Era costume. Andou a procurá-lo até que o homem apareceu. ?Por favor, pode deixar-me sair?? O homem, carrancudo, com um carrego de frangos congelados, rosnou algo, em protesto ostensivo, mas lá chegou o camião uns 2 metros abaixo e Mário manobrou para sair, mas teve de manobrar muito, na razão inversa da ?boa vontade? do homem, e seguiu um caminho mais longo até ao edifício turvo. Passavam 2 minutos, correu e encontrou as alunas. A porta da sala designada para o exame estava fechada à chave. As alunas protestaram; a mãe de uma delas também! Dirigiu-se ao gabinete da coordenação: fechado. No bar, encontrou uma funcionária da secretaria, também encerrada. Dª Alicatôncia abriu a boca num esgar de desdém. Mário estava pouco amistoso. ?Quero a sala aberta!? Alicatôncia replicou: ?essa sala não é nossa, é de Arquitectura!? ?Não é nada comigo?, roncou Mário. ?Foi este Departamento que me indicou a sala 2.? A mulher, com aquela cara de helicóptero estragado, recuou. Chamou outro funcionário, indicou outra sala. ?Senhor Professor, vamos resolver isto!? Ele não respondeu. Horas e horas a escrever programas de disciplinas, telefonemas, e-mails, 3 livros publicados em editoras, mais de 10 ali, centenas de artigos em jornais e revistas, fez as contas: 4+7+1+3+4+2+3=24 anos a estudar, bacharelato, licenciatura, teses, mestrado, doutoramento, curriculum, um relatório de associação, os júris a ralharem, acções de formação, congressos, aulas país fora, em Timor, palestras no Brasil no mês de férias, milhares de testes corrigidos, milhões de horas de aulas, sempre a mesma luta, para ter giz, para ter lâmpadas, para lhe abrirem a porta ou o portão! Luta com alunos, funcionários, colegas, inferiores, superiores, para trabalhar? Porque não ficara na pastelaria, no final do ensino secundário? Pensara que era bom estudar, que estupidez! Que ilusões tivera, quando jovem. Lembrou-se do caso do reitor contado em livro: ?com a minha idade, que faço? espero pela aposentação!? ?E eu?? ?Mude de profissão!? Estava frio, era tarde para isso, aliás the show must go on...


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 145
Ano 14, Maio 2005

Autoria:

Carlos Alberto Mota
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Vila Real
Carlos Alberto Mota
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Vila Real

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo