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Inclusão a duas velocidades

A Sandra e o Paulo vão à escola

A Sandra acorda duas horas e meia antes de chegar à escola. A mãe precisa de uma hora para a despachar e depois tem mais de uma hora e meia de caminho na carrinha da escola de educação especial, recolhendo todos os seus colegas pelo caminho durante 30 quilómetros. No regresso, a Sandra leva igual tempo até casa e vai dormitando ou vendo a paisagem passar, chegando a casa já perto da hora do banho e do jantar.
Ali perto, o Paulo, não anda em escola especial, está na escola regular da área de residência. Acorda uma hora antes para a mãe o preparar e depois são menos de 10 minutos até à escola do terceiro ciclo. Ao fim da tarde, o Paulo chega cedo a casa e tem muito tempo para estar com a família, ir à loja ou dar um passeio até à hora de jantar.
A mãe do Paulo vai com muita frequência à escola, pois fica perto. Acompanha o trabalho com o filho, participa em tarefas na sala e diz gostar imenso de conversar com o professor.
A mãe da Sandra raramente vai à escola da filha, pois a distância é tão grande, que teria de perder tempo no emprego.
Uma vez chegada à escola, a Sandra está numa sala com cinco colegas, todos eles também com deficiências profundas como ela. Tem apoio de técnicos e a educadora faz imensas actividades de comunicação, estimulação dos sentidos e outras, sempre com o máximo carinho e com a preocupação de lhe proporcionar os melhores cuidados pessoais e segurança. A escola tem muito material específico para a Sandra, não faltando recursos materiais. A sala é grande e tem muito sol.
O Paulo está numa escola com centenas de jovens da sua idade, alguns deles vizinhos e parentes que o visitam na sua sala, partilhada com outros cinco colegas, também deficiências muito acentuadas, como a Sandra.
No ensino regular, o Paulo tem aulas de Educação Física, Expressão Musical e Expressão Plástica com professores do segundo ciclo e faz imensas actividades com os colegas sem deficiência, que já se dizem seus amigos. Vai a passeios com eles, participa nas festas, datas comemorativas e em aulas e actividades conjuntas. Nessas alturas o Paulo fica muito agitado e sorri. Diz a mãe que há muito tempo não o via sorrir.
A sala do Paulo é pequena porque a escola não tem verbas e o material é pouco, mas os colegas construíram materiais a partir de fotos de catálogos (daqueles com preços proibitivos) e desta forma a sala não tem falta de recursos.
Tem técnicos que o apoiam, um professor para ele e os cinco colegas e auxiliares que o acarinham, lhe dão segurança e fazem com que nada lhe falte.
O Paulo todos os dias recebe visitas na sua sala ou vai ele próprio estar junto com os outros alunos da escola.
A Sandra está numa escola onde todas as crianças são deficientes e raramente conhece ou convive com jovens da sua idade de outras escolas.
A mãe do Paulo está muito contente por ver que o filho é acarinhado e valorizado numa escola tão grande e cheia de crianças. O que mais a satisfaz é constatar que o filho convive e é conhecido e apoiado pelos colegas sem deficiência. Confessa que no início teve algum receio, mas hoje o seu medo é apenas não poder continuar a fazer este percurso após os 16 anos.
Já a mãe da Sandra diz que não teve escolha, pois todas as escolas regulares fecharam a porta à sua filha, restando-lhe apenas instituições. Mas confessa que o seu desejo mais secreto era um dia ver a filha na escola junto dos outros. Resta-lhe o consolo de saber que é muito bem tratada e está em segurança. Pelo menos ali há pessoas que a aceitam e a protegem. Não acredita que esteja para breve o dia em que ela possa estar na escola dos irmãos, nem conhece casos em que isso seja possível.
Mas a mãe do Paulo não só sabe que é possível, como tem a certeza que está no caminho certo, sem que tenha sido necessária uma parafernália de recursos, adaptações ou investimentos. Diz que nunca pensou ver o filho junto com as outras crianças sem deficiência, sendo aceite e em perfeita segurança.
Também ela viu muitas portas fecharem-se, mas algumas pessoas apresentaram-lhe uma alternativa que foi ao encontro dos seus desejos mais profundos.
Esta é a história verídica de dois jovens de 14 anos com multideficiência, portadores de deficiência mental muito severa e graves problemas de saúde, motores, sensoriais e de autonomia.
São jovens para quem se defende à partida a institucionalização, acreditando-se que aí irão encontrar uma educação mais adequada e protegida, embora tal nunca tenha sido provado.
Enquanto alguns sectores educativos esgrimem argumentos sobre qual o melhor destino a dar a estes jovens, outros mostraram à família do Paulo esse caminho. E afinal as coisas tornaram-se simples quando alguém se deu ao trabalho de acreditar nelas.
A Sandra e o Paulo moram em concelhos vizinhos, mas algo de diferente se passou. O Paulo teve uma oportunidade na escola regular. E afinal não está esquecido a um canto, não é mal tratado pelos colegas e tem todos os cuidados e carinho que necessita. Tem transporte adequado, alimentação, apoios técnicos o mesmo rácio professor-aluno e os recursos humanos e materiais como a Sandra. É certo que a escola não recebe um cêntimo por integrar o Paulo e os colegas, e o espaço e material poderiam ser melhores. Mas isso tem a ver com as contradições entre a retórica e a prática de financiamento da educação especial no nosso país.
Apesar disso as famílias do Paulo e dos colegas dizem-se muito satisfeitas com o seu percurso escolar e nem querem ouvir falar em ambientes ?especiais?, pois há coisas que aprenderam a valorizar.
Como é que isto é possível?
Porque enquanto de um lado se perde tempo a discutir provas empíricas para justificar e orçamentar opções educativas segregadas; outros dedicam o seu tempo a pôr em prática coisas que não se discutem: dar possibilidade de escolha às famílias; e permitir a igualdade de oportunidades dos filhos.


  
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Edição:

N.º 145
Ano 14, Maio 2005

Autoria:

Jorge Humberto Nogueira
Mestre em Educação Especial
Jorge Humberto Nogueira
Mestre em Educação Especial

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