Perante o desempenho de Jerónimo de Sousa e os resultados eleitorais obtidos para o seu partido, os marxistas portugueses, mesmo os que, pregando à esquerda vivem à direita, não encontrariam talvez melhor alvo para revalidar o tópico da "luta de classes" (hoje, é claro, com uma configuração diferente da representada por Marx e Lénine) do que o mediático ensaísta Eduardo Prado Coelho, pelo artigo que escreveu no diário PÚBLICO de 1 de Dezembro passado. Vale a pena, para quem o não tenha lido ou já o esqueceu, reproduzir uma breve passagem em que EPC pilheriou impiedosamente a figura do novo líder do PCP, tal a mordácia com que o faz "ícone" de uma ideologia que, como afirmava, "já ninguém sabe o que significa" e deverá entender-se como uma "nostálgica cantilena de infância": "Jerónimo de Sousa vem directamente do Exército Vermelho sem passar pelos bombeiros de uma terra onde nasceu e cujo nome é impronunciável (algo que oscila entre o piscícola e o pechisbeque). Como tem um traço de modernidade, é um fanático dos Beatles. Não há festa nem dança onde não vá a Dona Constança. O povo comunista pode contar com ele para feiras, comícios e arraiais." Se estas palavras tivessem sido escritas por qualquer "turiferário da reacção burguesa", quaisquer comunistas, "ortodoxos" ou não, decerto as caracterizariam como uma remanência do "anti-comunismo primário". Conhecido, porém, o percurso intelectual de EPC, o seu sentido de humor e a sua competência teórica para compreender o que Amílcar Cabral queria significar quando postulava que os burgueses candidatos a revolucionários teriam de se "suicidar como classe" para serem acreditados, poucos duvidarão que EPC não fosse capaz de repetir o chiste a respeito de outros líderes de sinal contrário ao de Jerónimo de Sousa, qual Santana Lopes e Paulo Portas, sabendo-os também sensíveis ao pé de dança na selecta "noite de Lisboa" e aos contactos com a "res publica" nas feiras e arraiais, sem contrairem as pituitárias e cochicharem para o lado: "Oh, que horror, o povo!..." Mas EPC tem o direito democrático de julgar que "já ninguém é hoje marxista-leninista (a não ser na pequena ilha de sobrevivência a curto prazo que é a Cuba de Fidel), e sobretudo já ninguém sabe o que significa pensar (se é que alguma vez significou) em termos de marxismo-leninismo". António José Saraiva disse coisa semelhante, há alguns anos, depois de se ter desligado do PCP: "O Marxismo acabou, como interpretação da História e como programa de acção." Alguém lhe terá respondido, porventura, como Galileu quando compelido pela Inquisição a negar que a Terra girava em torno do Sol: "Mas ela move-se..." De facto, seria aberrante, por inadmissível, que, hoje, um dirigente comunista ainda fundamentasse a "luta de classes" nos mesmos pressupostos que motivaram os trabalhadores ingleses e franceses dos primórdios da Revolução Industrial, de que se tornou emblema, na França, a Comuna de Paris. Todos sabemos, hoje, que alguns segmentos da "classe operária" partilham com os patrões os privilégios da burguesia e que só organizariam greves gerais para não ver diminuídos os seus proventos - como se viu, também em Paris, no Maio de 68, em que a bandeira da luta contra o "capitalismo e a sociedade consumista" foi empunhada pelos estudantes. Na verdade, a luta de classes, com os contornos que se identificam nos finais do século XIX e começos do século XX, quando a Nobreza e a Burguesia ainda se assumiam como os verdadeiros sujeitos da História, não existe mais. Hoje, ela tem outra abrangência, e mais global porque se desenvolve simultaneamente em várias frentes e latitudes: é a luta dos pobres contra os ricos, em que os primeiros, "in extremis", poderão não distinguir o adversário entre patrão e empregado. Entretanto, algum sentido ponderável se encontrará numa votação que a "BBC News Online" promoveu em 1999, na qual os respondentes colocaram Karl Marx à frente dos dez maiores pensadores do milénio, seguido de Einstein e Descartes. Perante esta insólita revelação, já não surpreenderia se EPC visionasse o "lider cantante" a imitar Manuel Freire interpretando o poema de António Gedeão. Pelos vistos, ainda há quem cante fervorosamente que "o sonho comanda a vida", pensando, sentindo, que só os cadáveres não sonham e que a "morte das ideologias" e o "fim da História" pertencem à mitologia do neo-liberalismo, este também sujeito a uma reformulação (ou extinção?) previsível...
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