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A "Peregrinação" e o regresso dos portugueses à China

Quase quinhentos anos depois que D. João II enviou dois emissários (Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva) ao Oriente, para  descobrir o fabuloso  império de um mítico rei-sacerdote cristão,  Preste João,   que se dizia existir algures entre o Egipto e a Tartária, e ao mesmo tempo reconhecer  o caminho das Índias que Vasco da Gama deveria seguir com vista a novas conquistas, - num momento em que já eram negligenciáveis as do Norte de África -  o Chefe do Estado português, Jorge Sampaio, à frente de uma embaixada de cem empresários  interessados em negócios na China, retoma a trilha que se tornou emblemática do "espírito aventureiro" dos portugueses e que Luís de Camões e Fernão Mendes Pinto consagrariam, cada um a seu modo, em duas obras ímpares da Literatura Portuguesa: "Os Lusíadas" e "Peregrinação".
A seu modo, porque Camões era um  "cavaleiro fidalgo"  de formação  superior,  com uma cultura clássica adquirida provavelmente   na Universidade de Coimbra, enquanto Fernão Mendes Pinto não passava de um "zé-ninguém" de Montemor-o-Velho que, depois de ter servido, em Lisboa, na adolescência, na casa nobre de um filho do Rei,  foi engajado  na tripulação das naus dirigidas ao Oriente, compostas, na maior parte, por condenados transferidos das prisões para as novas conquistas -  das quais os "nobres" estavam dispensados por se tratar de missões de "comércio e trato" que interessavam sobretudo à mercancia e não eram revestidas da mesma "dignidade" que comprometia a fidalguia na defesa das fronteiras nacionais,  a qual compreendia, para lá do estreito mar algarvio, as ameaças dos mouros do Norte de África.
Por razões que já eram óbvias na época, pois colidia  com a visão épica de Camões, a "Peregrinação" ainda hoje não faz parte das leituras eleitas pelo português medianamente culto, embora tenha sido, na altura, uma das obras  mais traduzidas na Europa, com edições em língua espanhola, francesa, alemã e inglesa, competindo com o Amadis de Gaula, Lazarilho de Tormes, El Cid e  Marco Pólo. E a razão do luso distanciamento é clara: os "heróis" da "Peregrinação" são, de facto, anti-heróis, com muita audácia mas poucos escrúpulos,  que não se recomendam para figurar na história e na lenda celebrativas da "Raça"; e o sentido da análise "sociológica" que o autor faz do Oriente, contrária  à estereotipia eurocêntrica e racialista com que a Europa olhava o Outro, mesmo desconhecido, talvez só um Edward Said (apesar de ter afirmado, há mais de vinte anos, que a ninguém ocorreria utilizar  o D.Quixote e o Amadis de Gaula - embora a autoria deste fosse disputada  por portugueses e espanhóis -  para compreender a Espanha do século XVI) exaltaria Fernão Mendes Pinto como exemplo de um "Orientalismo" verdadeiramente humanista, despreconceituoso e descomplexado.
Conhecedor do terreno que pisava, Mendes Pinto pôs quase sempre na boca de terceiros a crítica que os Orientais faziam ao "diabo branco" (que ainda no século XIX era a representação dos ingleses da Guerra do Ópio), mas não se furtando a exaltar o nível superior da sua civilização, na qual já se comia com dois pauzinhos quando os portugueses ainda usavam as mãos. Os contrastes das ideias e costumes foram encarados por muitos estudiosos como uma visão utópica do Oriente. Hoje, sabemos quanto vale a cultura milenária dos povos orientais. Fernão Mendes Pinto faz o cotejo de muitas maneiras, por exemplo, pondo na boca do rei dos Tártaros esta apreciação sobre os portugueses:
"Homens que por indústria e engenho voam por cima das águas todas para adquirirem o que Deus lhes não deu, ou a pobreza neles é tanta que de todo lhes faz esquecer a sua pátria, ou a vaidade e a cegueira que lhes causa a sua cobiça é tanta que por ela renegam a Deus e a seus pais."
O modo como Portugal devolveu à soberania da China o entreposto de Macau  e como ali foram prosseguidas, duradouramente, as "relações de comércio e trato",  será favorável a um "regresso" dos modernos mercadores. Os chineses, depois de Teng Xiaoping, abriram a sua economia ao mercado  (mas "socialista", frisam), condescendendo pragmaticamente que "não importa que o gato seja preto ou branco, desde que cace ratos" - e fazem disso prova, "peregrinando", em massa, pelo  Ocidente afora.    omHoH
Ignoramos se na preparação pedagógica  da embaixada comercial portuguesa Jorge Sampaio fez alguma alusão  à viagem de Fernão Mendes Pinto. De qualquer modo, talvez não fosse inútil e descabido presentear os empresários com um exemplar da  "Peregrinação" - que é muito menos a estória de uma viagem, nimbada pelo exotismo e o fantástico,  do que, à vista desarmada, poderá parecer...


  
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Edição:

N.º 143
Ano 14, Março 2005

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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