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Se o poder está em toda a parte... não estará em parte nenhuma?

Numa conferência realizada recentemente, na qual éramos também participantes, um dos intervenientes dizia, mais ou menos literalmente, o seguinte:
«Misturar na agenda da eleição, digamos de um autarca, o facto de ele ser gay, é integrar politicamente um factor de obscurecimento daquilo que é, de facto, central: a desigualdade de raiz económica! Quer dizer, para alcançar os seus fins o capital até os gay utiliza para disfarçar a sua própria natureza e para esconder a injustiça social que ele próprio origina!»
Esta perspectiva é frequentemente veiculada por quem defende que os processos sociais e culturais são determinados, em última instância, por interesses económicos e/ou empresariais. Mesmo os fenómenos de teor mais cultural ? como é o caso referido ? são esbatidos numa estrutura de poder de base económica. O poder é sempre o poder do dinheiro e das suas necessidades de circulação. Assim, por exemplo, o presidente da câmara de Paris, assumidamente homossexual, estaria, ao declarar a sua orientação sexual, a desviar a atenção do público das ?verdadeiras? questões (económicas) e a favorecer o desenvolvimento dos interesses do capitalismo nacional e global!
O absurdo desta questão pode ser mais claramente evidenciado quando se pensa na capacidade que na última década adquiriram os cidadãos de mobilidade reduzida para defenderem os seus interesses através de dispositivos legais face ao problema dos acessos aos edifícios públicos e mesmo privados. Corresponderá esta reivindicação destes cidadãos, a partir da sua diferença e na base de uma política de inclusão, a fazer o trabalho de sapa do capitalismo, enchendo, assim, de forma oblíqua, os bolsos dos construtores civis, arquitectos, fabricantes de cadeiras de rodas, etc.? O ridículo da assunção de que, em última análise, é o poder económico que está a mover politicamente estas reivindicações torna-se explícito na sua consequência lógica: os cidadãos de mobilidade reduzida têm agora «menos» poder e possibilidades de defender os seus interesses, dado que o tal ?verdadeiro poder?, o poder económico, os está a manipular, a eles e às instituições, como consumidores de cadeiras de rodas, de elevadores especiais de acesso, etc. Por outras palavras, quanto mais incluídos são, mais e melhor serviriam os interesses do sistema enquanto consumidores não só de objectos materiais, mas também da ilusão de inclusão.
Esta postura política, que sublinha sobretudo a dimensão económica da determinação social, acaba por identificar uma forma de poder, o económico, e, de certa forma, isolá-la de todas as outras. O poder está na economia e nos aparelhos do estado, isto é, no ?sistema? (capitalista). A história do capitalismo dá-nos dados que nos permitem compreender a ênfase desta perspectiva, porém esse mesmo capitalismo não só não foi sempre «apenas» de teor económico, como, desde os anos 70, parece estar a reconfigurar-se quer como ?capitalismo de casino?, de que falam uns, quer como ?capitalismo soft?, de que falam outros.
Como se percebe dos dois exemplos acima referidos, o poder não tem uma relação essencial e exclusiva com o económico. Isto é, o poder não é só uma forma de opressão, pode ser também uma forma estruturada e estratégica de combate à opressão. É inegável que as organizações e as campanhas quer dos cidadãos de mobilidade reduzida, quer dos grupos que se organizam em torno de uma identidade sexual, não só usam poder como o transformam numa arma política. Há, por exemplo, legislação neste momento em vigor, na sequência da Declaração de Salamanca e outras semelhantes, que transformou as reivindicações dos cidadãos com mobilidade reduzida em possibilidades concretas de actuação. Por outro lado, ser homossexual e presidente de uma importante câmara não são duas condições desligadas entre si; pelo contrário, são importantes, em termos de consequências políticas e sociais, quer para os homossexuais, quer para o exercício de cidadania em geral. Do mesmo modo, esta reconfiguração do poder parece-nos também ficar clara quando se diz que não se pode separar o facto de Condoleezza Rice ser Secretária de Estado dos EUA e ser negra e mulher. Fazer a separação entre estas duas condições parece-nos corresponder ao ignorar, por um lado, o processo histórico pelo qual as mulheres, os negros, os «gay» e os cidadãos de mobilidade reduzida conseguiram a consagração de direitos fundamentais à sua inclusão, por outro lado, significa ignorar precisamente que aquelas condições de poder, muitas vezes apesar da natureza política dos protagonistas em causa (particularmente evidente no caso de Condoleezza Rice), valorizam política e socialmente os indivíduos e os grupos em causa.
Quem usualmente argumenta, eventualmente referindo os casos aqui mencionados, que os homossexuais, os negros e mesmo as mulheres, nas situações descritas, estariam mais a ser manipuladas pelo poder económico hegemónico do que manipulando eles próprios o poder político a favor das suas identidades, a sua crítica parece dimanar da possibilidade de o poder poder ser exercido como se fosse «não-poder». Nesta utopia política, as relações sociais seriam lugares brancos em que o poder e o seu exercício seriam esvaziados pela sua distribuição igualitária. Por outras palavras ainda, na ânsia de igualdade, as diferenças acabam por ser aniquiladas em nome do exercício abstracto da cidadania, que tornaria Condoleezza Rice incolor e o presidente da câmara de Paris sexualmente neutro.
Assim, e para responder à pergunta que acima, no título do artigo, colocámos, não nos parece que se o poder está em toda a parte, se possa dizer que ele não está em parte nenhuma. De facto, é a combinação do exercício da cidadania e, aí, a afirmação da identidade que reside o essencial das novas formas de cidadania presentes, nomeadamente, nos novos movimentos sociais, de natureza mais sociocultural do que económica, em que a cidadania e a identidade são indeslindáveis. Nesta lógica, não é possível esquecer que o cidadão-presidente é «gay» e que a Secretária de Estado é negra e mulher.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 143
Ano 14, Março 2005

Autoria:

António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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