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Os novos medicamentos da Medicina Molecular: Proteínas Recombinantes ? 1ª parte

A capacidade adquirida de identificar a informação genética que codifica uma proteína, copiá-la e transferi-la para um vector de suporte que permite a sua expressão novamente em proteína, quando introduzido num organismo auxiliar, tornou-nos independentes das fontes naturais de proteína.

No número de Outubro referi que a clonagem de seres humanos não é um objectivo para a comunidade científica séria. A discussão sobre a possibilidade de o fazer foi relançada pela clonagem da ovelha Dolly, em 1996. Depois deste ensaio, vários outros se seguiram, utilizando diversas espécies de animais domésticos. Se não há interesse em aplicar a técnica a seres humanos, porquê o investimento na clonagem de animais?
Tirando o potencial económico do mercado dos animais de estimação, explorando a ignorância de donos endinheirados que desejam ressuscitar o seu fiel amigo, esta investigação tem por trás objectivos muito concretos que envolvem a produção de uma classe relativamente recente de medicamentos de grande potencial terapêutico e que representa o mais expressivo sucesso da aplicação da biologia molecular à prática médica ? as proteínas recombinantes. Começarei hoje a discutir o que são estes novos medicamentos, exemplos da sua utilização corrente e formas de produção.
A maioria das doenças genéticas humanas resulta de uma deficiência de produção de determinada proteína por alteração da informação presente no material genético. Nalguns casos particulares, a simples administração da proteína por via injectável é suficiente para minorar grandemente os sintomas ou mesmo corrigir temporariamente o problema. O exemplo mais paradigmático é o da diabetes insulino-dependente, em que a administração regular da proteína insulina controla a manifestação da doença. Há, no entanto, outros exemplos de relevo, como os casos de nanismo corrigível pela administração de hormona de crescimento durante a infância; ou da doença de Gaucher, em que o tratamento com a proteína em falta evita a morte durante a infância.
Uma vez identificada a proteína como medicamento chave a ser usado numa terapêutica de substituição, o problema que se põe é o de como o produzir. Ao contrário de drogas mais simples, as proteínas não podem ser sintetizadas quimicamente. A forma de obtenção passa pela purificação da proteína produzida por um ser vivo. Assim, a insulina usada no tratamento da diabetes foi durante muito tempo purificada a partir do pâncreas de suínos e bovinos. Trata-se, no entanto, de uma abordagem pouco eficiente e cara, ensombrada pelo facto de as pequenas diferenças existentes entre a insulina animal e humana poderem provocar alergias graves, ocasionalmente pondo em risco a vida dos doentes. Em certos casos, como o da hormona do crescimento, verifica-se que apenas a proteína produzida por seres humanos resulta como tratamento, obrigando à sua obtenção a partir de cadáveres humanos, neste caso do cérebro, encarecendo ainda mais a sua produção. O risco de transmissão de agentes infecciosos humanos ficou bem patente com o aparecimento, no início da década de 80, de vários casos de encefalopatia espongiforme (a variante humana da ?doença das vacas loucas?) em jovens tratados com esta proteína, levando à retirada do medicamento do mercado.
O desenvolvimento das técnicas de manipulação do material genético, conhecidas por tecnologia do DNA recombinante, a partir da década de 70 do século XX, veio abrir novas portas ao tratamento destas doenças. A capacidade adquirida de identificar a informação genética que codifica uma proteína, copiá-la e transferi-la para um vector de suporte que permite a sua expressão novamente em proteína quando introduzido num organismo auxiliar tornou-nos independentes das fontes naturais de proteína. Passou a ser possível a produção industrial destes medicamentos a baixo custo, recorrendo a bactérias ou leveduras cujo material genético é modificado de forma a incluir o gene humano de interesse, sem risco de alergias nem de infecção.
A insulina recombinante foi o primeiro desta nova geração de medicamentos a ser disponibilizado no mercado em 1982, tornando o tratamento da diabetes acessível e seguro a vastas camadas da população. Actualmente, a lista de proteínas recombinantes disponíveis ultrapassa já as duas dezenas, não se limitando ao tratamento de doenças hereditárias. Por exemplo, a vacina da Hepatite B e vários tratamentos administrados a doentes com cancro são proteínas recombinantes.
Sucede, no entanto, que nem todas as proteínas humanas podem ser produzidas correctamente nestes microorganismos. A função das proteínas não é apenas definida pela sequência de aminoácidos que as compõe, mas também por modificações químicas efectuadas em compartimentos especializados da célula. A natureza das modificações introduzidas é muito diferente entre os grandes grupos de seres vivos e em muitos casos apenas uma célula de mamífero consegue produzir uma proteína humana funcional. Torna-se assim necessário o desenvolvimento de sistemas alternativos de produção, sendo o recurso a animais domésticos genéticamente modificados (vulgo transgénicos) uma das opções possíveis. É neste contexto que se enquadra a clonagem de animais domésticos, a abordar no próximo artigo.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 142
Ano 14, Fevereiro 2005

Autoria:

Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular

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