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Sebastianismo ?à la carte?

Quem, com alguma preocupação, pensando o País dependente que continuamos a ser hoje, se der ao incómodo de reverter a memória só até  à época recente do Salazarismo - e por via das dúvidas desvanecer eventuais  sombras que ainda envolvessem a ideia  de os Portugueses sempre terem sido agraciados com o aparecimento de heróis e santos providenciais  - há-de ter ficado perplexo com a encenação esplendorosa organizada pelos  principais partidos políticos para receberem os seus líderes,  em  recintos a trasbordar de luzidos correlegionários e convidados,  numa onda de euforia  que pedia meças com as entradas triunfais, no Egipto, de Alexandre Magno, Júlio César ou Napoleão Bonaparte...
A televisão não iludiu: naqueles espaços onde estrondeavam vivas e hinos apoteóticos, naqueles milhares de  rostos banhados pela luz de uma Certeza revelada, que já era mais do que uma Esperança prometida, um espectador céptico só poderia fazer duas leituras: ou os líderes, confiados nos  sortilégios da propaganda, contavam que a teatralização, pela positiva,  da campanha eleitoral  funcionaria, para os espíritos ávidos de mensagens messiânicas, como  terapia contra o pessimismo instalado em grandes faixas da  sociedade portuguesa; ou simplesmente os líderes, quais ungidos pela Providência que os escolheu, interiorizaram e assumiram, sem rebuço, o papel do  "salvador" que respeitados cientistas sociais afirmam  ser "esperado" pelos portugueses nos momentos de grande depressão e ansiedade.
 Há quem ainda chame "sebastianismo" a essa "fé" que teria começado com os "sinais" vistos no céu pelo primeiro Rei, na  batalha de Ourique e que depois, ciclicamente, ressurge nas trovas do sapateiro Bandarra, em Trancoso;  nos sermões do padre António Vieira, desde o sertão do Brasil;  nas manifestações da  República Nova de Sidónio Pais e do Estado Novo de Oliveira Salazar; e, por último (?) nas "mensagens" de Fernando Pessoa. Pode perguntar-se quem se segue na lista dos Encobertos?
E tudo muito estranhamente, pois está mais que sabido que D.João IV não "ressuscitou" e D.Sebastião, além de nunca ter "transmigrado" de Alcácer Quibir, foi um jovem Rei precipitado ou mal aconselhado que, desprezando uma regra elementar aplicada noutras guerras, desta vez  não cuidou de avaliar a força do adversário maior e por isso sucumbiu ingloriamente, originando a perda da independência nacional. E que já não há mais Impérios para desmentir a nossa pequenez real, além do único que foi mais mercantilista do que judaico-cristão seria o Quinto, este, sim, consentâneo com a actual  mística dos novos  "cruzados" dos Estados Unidos. 
Eis, agora, que uma nova Esperança agita a alma dos portugueses, mas introjectada  pelos políticos como um ansiolítico (que ilude os efeitos das crises sem   debelar  as causas). Na  forma de "slogans" que, paradoxalmente, agravam o estado de ansiedade,  de um lado, convocam-se os ânimos para atingir Novas Fronteiras; de outro, sob o lema dos Heróis do Mar, incita-se a voltar ao Atlântico - em todo o caso  ressalvando que a Europa (e já não um Portugal "orgulhosamente só") é ancoraduro seguro e fiável.
No hermetismo das sibilinas  exortações, é  preocupante a indefinição do que os líderes entendem por Atlântico e Novas Fronteiras (geográficas? ideológicas?), não havendo  mais mares para desvendar, colónias para possuir, fronteiras para inscrever. O Mar Magnum que outrora foi português, no dizer do Poeta, hoje  quase não vai além da linha do horizonte; a  Índia, a África e o Brasil têm outros donos; a velha e única fronteira terrestre que separava Portugal da Europa é comum a Espanha e, sendo agora uma linha de marcos virtuais,  por ela transitam à vontade milhões de europeus, uns que já se conheciam desde a fundação da nacionalidade, ora amigos, ora inimigos, outros de quem até há pouco não se sabia como era o rosto, a língua e os costumes. E, contudo, muitos deles,  instalados já com pleno direito deposse ou usufruto, plantam vinhas, oliveiras e pomares nas terras primitivamente arroteadas por celtas, árabes e lusitanos e depois  abandonadas pelos portugueses que, por  não caberem no berço, no dizer de outro Poeta, venderam ou alienaram as velhas casas de   pedra e xisto herdadas dos antepassados, para custearem a viagem que os levaria a  Novas Fronteiras.  
Que inesperado líder ousará dizer que é urgente fazer a terapia do regresso ao Portugal verdadeiro, para revivificar  as "pedras mortas",  passando por Tormes ou Trancoso e, depois de uma noite de calma reflexão, revendo, na manhã seguinte, a cara lavada, decidir como Destino: "Basta de fingir de "francês" ou "americano". Antes que se percam os anéis e os dedos, toca a lavrar a terra com os bois que ainda ficaram e alimentar como última Esperança  que não venham maus ventos das bandas de além fronteira."?


  
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Edição:

N.º 142
Ano 14, Fevereiro 2005

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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