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Deslocalizações À espera de um empresário

Poucas palavras. Rapidez nos gestos. Faltam 600 camisas para completar uma encomenda. O prazo terminará no fim do dia. O horário prolongar-se-á até a última peça ser embalada. Elas trabalham. Eles também, apesar de serem apenas três. Rostos determinados. Expectantes. No íntimo o receio de que o esforço seja em vão. ?Se Deus quiser há-de aparecer um empresário que tome conta de nós?, rezam as trabalhadoras. É tudo o que precisam, alguém que compre a Confecções Afonso e ponha novamente a fábrica a ?andar para a frente?.

Maria da Piedade trabalha há 14 anos na Confecções Afonso, uma fábrica têxtil que produz camisas de homem e blusas de senhora para grandes marcas de luxo. Desenrola um cone de tecido numa grande mesa rectangular para o corte. Tristeza foi o que sentiu quando soube da intenção dos ?patrões? em fechar a fábrica. De forma inesperada, à surdina. Planearam a deslocalização da unidade de produção para a República Checa. ?Tínhamos muita confiança neles?, desabafa num pretérito cheio de mágoa. Um sentimento que todas partilham. As 98 mulheres.
O comportamento dos administradores da fábrica foi o que mais ?chocou? Conceição Pinhão, gerente ainda em funções. A história que precedeu o descalabro teria muito de cómica, não fossem as consequências que ainda podem daí advir. Como habitualmente acontecia, ?trabalhadoras e patrões? reuniram nesse dia ? 26 de Novembro ? para acertar agulhas sobre encomendas e prazos de entrega. ?Uma reunião perfeitamente normal?, recorda Conceição Pinhão. ?Eles [os administradores da fábrica] de fato e gravata, sorridentes?? Um pormenor na indumentária que ganhará relevância linhas mais tarde.
O dia de trabalho terminou, como de costume. Horas mais tarde, já noite, uma das trabalhadoras a morar na proximidade das instalações da fábrica, a zona industrial de Arcos de Valdevez, notou umas movimentações estranhas ao redor da fábrica. Bastou ?uma espreitadela? à zona para o mistério ficar esclarecido. ?Os alemães [os administradores] tinham vestido calças de ganga e t-shirt e andavam a carregar com cones de tecidos e maquinaria para um camião?, desvenda a gerente, sem conseguir esconder a revolta presente na linguagem. O ?roubo?, assim se referem as trabalhadoras ao facto, foi prontamente denunciado a Conceição Pinhão que assim que foi alertada nessa mesma noite se deslocou de Braga, onde reside, até Arcos de Valdevez, convocando todas as colegas para um retorno de emergência ao local de trabalho.
?Circundamos a fábrica e chamamos a GNR?, recorda a gerente com um leve sorriso de vitória na expressão. Com medo de represálias os administradores refugiaram-se dentro da fábrica. ?Pedi a todas que tivessem calma para continuarmos com a razão do nosso lado?. De ânimos ao rubro, mas controlados, as trabalhadoras deixaram sair os administradores escoltados pela GNR. Ficou a promessa de que voltariam no dia seguinte para se sentarem à mesa das negociações com as trabalhadoras. Os equipamentos voltaram aos seus lugares. Os alemães também. Nunca mais apareceram na fábrica depois do episódio da noite de 26 de Novembro. ?Parece que fugiram, nessa mesma noite, para Espanha?, diz Conceição Pinhão.
Com encomendas para entregar até Fevereiro, maquinaria e matéria-prima e vontade de não perder o emprego, a solução foi continuar a produzir. Numa espécie de autogestão, a recordar outros tempos, mas já não permitida por lei, as funcionárias pagaram os salários de Novembro, que estavam em atraso, os de Dezembro e os de Janeiro. ?Com a compreensão de todos?, adianta Conceição Pinhão. Não só das funcionárias, mas também dos fornecedores que à ?confiança? continuam a abastecer a fábrica com a matéria-prima necessária à produção e dos clientes de quem a gerente conseguiu o adiantar do pagamento das facturas. E assim elas resistem ao encerramento.
São cada vez mais frequentes as situações em que face a uma tentativa de encerramento de uma empresa, proprietários e funcionários entram em disputa pelos equipamentos. Um ?acto de defesa dos seus empregos?, considera Manuel Freitas, dirigente da Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores Têxteis (Fesete). No caso das Confecções Afonso o dirigente é claro: ?Independentemente da legalidade da situação, as trabalhadoras têm o direito de exigir que a empresa cumpra com os seus objectivos, uma vez que sem os equipamentos não teriam conseguido pagar os salários.?
Aos 46 anos, tudo o que Maria da Piedade quer é continuar a trabalhar. ?Sou muito nova para a reforma?, sorri. Do outro lado da linha de produção, ajudando-a a estender os tecidos para o corte, está Ana Isabel, 24 anos de idade. Trabalha desde os 16 na Confecções Afonso tendo iniciado lá a sua actividade profissional após a conclusão do 9º ano. ?Se a fábrica fechar, não sei o que fazer da vida, trabalhei sempre aqui!?, desabafa a jovem. Maria da Piedade ouve o lamento e contrapõe: ?Se ela não sabe, que direi eu?. A falta de opções laborais na região é bem conhecida. Por isso, garante terem apenas duas hipóteses caso se vejam no desemprego: ?Lavar panelas num restaurante, ou fazer limpezas!?

?Não queremos estar aqui!?

O fenómeno da deslocalização é sobejamente conhecido na indústria têxtil e de vestuário, mas não lhe é exclusivo. Tem afectado os sectores do calçado e dos electrodomésticos. Acontece quando uma empresa ? nacional ou multinacional - decide encerrar uma unidade de produção num país e reabri-la noutro com o objectivo de diminuir os custos da produção.
Quando Conceição Pinhão pediu aos administradores uma explicação para o encerramento da fábrica a resposta foi imperativa: ?Não queremos estar aqui!?, terão dito. A justificação não satisfez a gerente que não hesita em acusar a administração de ?ter agido de má fé?. Sobre o novo destino, a República Checa, Conceição Pinhão diz acreditar que, sendo um país com elevadas taxas de formação superior, os trabalhadores checos rapidamente comecem a exigir salários mais altos do que os empresários contam pagar.
De acordo com a Fesete, a tendência para a perda de emprego e a redução das empresas vai continuar. ?Em particular entre aquelas que, como a Confecções Afonso, só vendem minutos de máquina [tempo de operação]?, constata Manuel Freitas. Ou seja, empresas cujo tipo de produção se limita à confecção de produtos por moldes, sem que o trabalho realizado incorpore um valor acrescido na peça, que poderia acontecer por exemplo na área do design.
Isto acontece, acrescenta o sindicalista, porque seja na China, Índia ou Paquistão, ?há sempre quem venda minutos de máquina mais baratos?. ?Ainda que a produção seja feita à custa de uma brutal exploração do ser humano, do trabalho infantil e sem respeito pelo meio ambiente?, esclarece. 
Mas enquando as empresas portuguesas se deslocalizam para a Ásia, a China perde empregos para o Vietname e o Cambodja, onde a mão-de-obra é ainda mais barata, alerta a Federação Sindical Internacional dos Têxteis.

Indemnizar os herdeiros

Alvoraçadas, três ex-trabalhadoras de uma empresa de fibras químicas de Valongo dão largas ao seu descontentamento na secretaria da Fesete. A fábrica encerrou há 20 anos. As indemnizações aos trabalhadores foram pagas há dois meses. ?Infelizmente, para muitos dos nossos associados quem recebeu a indemnização já foram os herdeiros e não os próprios?, lamenta Manuel Freitas. Outros trabalhadores não foram a tribunal interpor a acção pelo que não serão indemnizados. 
?Os trâmites do processo de falência são muito lentos?, critica o dirigente. Só quando a propriedade e os bens existentes são vendidos e apurados os créditos de todos os que intreposeram acções em  tribunal este processa o pagamento. Mas se, no final dos pagamentos, não há mais ninguém a quem o tribunal deva o que restar dos bens que foram vendidos em hasta pública é devolvido aos antigos proprietários. A demora faz com que muitos dos que interponhem acções vão desistindo de esperar.
Na Confecções Afonso ainda se espera por uma solução. Algum empresário que faça uma proposta de compra da fábrica aos proprietários e mantenha os postos de trabalho.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 142
Ano 14, Fevereiro 2005

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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