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Mais uma aposta perdida?

Sem reequacionar a utilização dos tempos e dos espaços no interior das escolas, prevendo outro tipo de actividades de aprendizagem para além das aulas, reforçando o trabalho em equipa por parte dos professores, é impossível alargar a frequência e a taxa de conclusão do ensino secundário.

O que nos vale continuam a ser os alunos, os desafios que nos colocam, a relação que com eles vamos construindo, o sentido que em comum descobrimos para as actividades que desenvolvemos. Pensar neles, na maneira como os podemos interessar e ajudar, gostar de saber deles quando, após longas horas de trabalho em comum, partem para outras etapas de formação ou iniciam a sua vida profissional. E também alguns colegas com quem confrontamos opiniões, partilhamos dificuldades, perspectivamos caminhos, encontramos compreensão. Afinal, foi assim que nos fizemos professores, o que é bem mais do que uma escolha profissional feita no início da juventude.
Por isso desesperamos quando muitos alunos ficam pelo caminho e sabemos porquê, quando a excessiva normatividade nos impede de fazer o que bem sabemos que deve ser feito ? por exemplo, trabalhar intensivamente competências de língua antes de avançar para outros saberes e competências ou sugerir apoios externos, reconhecendo que a escola não tem meios para remediar as lacunas que gerou, em vez de os proporcionar no interior da escola ? , quando, um após outro, desperdiçamos todos os momentos de mudança global e intencional ? leia-se «Reformas» ? continuando, no essencial, a fazer o mesmo.
Alguém deu por ela que se vive um momento de «Reforma» no ensino secundário?
Sim, dividiram-se cursos, reajustaram-se programas, mantendo o seu carácter acentuadamente prescritivo e enciclopédico, algumas disciplinas mudaram de nome e podem ter exame nacional no 11º ano, as aulas passaram a ter 90 minutos, mas com dois sumários e duas faltas, os cursos gerais passaram a chamar-se científico-humanísticos e, «ó colega, agora os objectivos chamam-se competências...»
E com tudo isto o que ganham os alunos? Têm percursos escolares mais adaptados aos seus interesses e necessidades? Encontram nas escolas meios de remediar falhas em aprendizagens anteriores? São mais integrados, aceites e ajudados enquanto pessoas com vidas, muitas vezes, confusas e sofridas? Têm mais espaço e tempo para se dizerem e crescerem?
Mais uma vez se mexeu no acessório, no que é mais fácil mudar, no que envolve menos riscos, tanto para as escolas como para a administração e poder político.
Não é possível mudar a natureza selectiva e reprodutora das desigualdades sociais e aumentar a taxa de conclusão deste ciclo de estudos sem enfrentar de forma decisiva um conjunto de questões que passo a enunciar:
As escolas continuam demasiado amarradas, com pouca margem de decisão. São, é certo, pelo menos as públicas, as instituições cujo acesso é mais democrático. No entanto, a sua organização interna de tempos e espaços, mantém-se, no essencial inalterada, desde o desenvolvimento do serviço público de educação no século XIX. Predomina a atomização e padronização dos tempos e dos espaços, a lógica disciplinar, estritamente sequencial, em que o mesmo horário se repete do princípio ao fim do ano e em que as aprendizagens e os processos de trabalho estão em grande parte pré-determinados, mesmo se manifestamente desadequados aos alunos que servem. Custa-nos  imaginar como poderia ser de outra maneira de tão habituados que estamos a andar ao ritmo de toques, sucedendo-nos individualmente perante os alunos, de acordo com um esquema estabelecido no início do ano lectivo. Quando nas organizações económicas se flexibiliza, se trabalha em equipas, se responsabiliza mediante a prestação de contas, nas escolas persiste o «trabalho em cadeia», mesmo quando se sabe que não vai resultar. Quantos de nós não andamos, em nome dos exames e dos programas, a tentar ensinar a certos grupos de alunos coisas que sabemos que não podem aprender? Sem reequacionar a utilização dos tempos e dos espaços no interior das escolas, prevendo outro tipo de actividades de aprendizagem para além das aulas, reforçando o trabalho em equipa por parte dos professores, é impossível alargar a frequência e a taxa de conclusão do ensino secundário.
Todo o ensino secundário deve ser tendencialmente profissionalizante. Caso contrário estará refém do ensino superior. Descredibilizam-se socialmente as tecnologias, destinadas a preparar o ingresso no mercado de trabalho, contrapondo-as a saberes científicos e humanísticos, preparação privilegiada de formação escolar de nível superior. Enquanto houver cursos destinados preferencialmente ao acesso ao ensino superior esses serão sempre os mais escolhidos, independentemente da sua qualidade intrínseca. Se todos os cursos  do ensino secundário tiverem uma forte componente de saberes aplicados e conferirem uma qualificação profissional, cabendo posteriormente às instituições do ensino superior seleccionar os seus próprios alunos, o ensino secundário passará a valer por si e deixará de haver hierarquização entre diferentes vias e cursos.
Vencer os bloqueios que limitam o ensino secundário requer um novo modelo de profissionalidade docente. A concepção e organização dos cursos e das demais actividades escolares pressupõe um outro tipo de relação entre os professores e as escolas onde trabalham. A componente aulas assume um peso desproporcionado na concepção que temos da profissão de professor. O trabalho com colegas de Departamento ou de Conselho de Turma, com alunos, individualmente ou em grupo, são requisitos de uma escola que integre e responda a alunos muito diferentes e que só subsidiariamente são considerados deveres profissionais dos professores. Só avançando, de forma gradual e planeada, para um horário de trabalho de 35h na escola é possível criar condições para as interacções necessárias, em tempo conveniente, capazes de dar uma nova vida e capacidade de resposta às escolas.
Optei neste texto por só abordar questões interiores às escolas porque são aquelas que mais directamente tenho vivido. A relação das escolas com o seu meio social, com as autarquias e com a administração é toda uma outra área que importa reflectir tendo em vista a promoção de novas práticas, mas que não cabe no espaço deste depoimento. Fica para um próximo texto.


  
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Edição:

N.º 141
Ano 14, Janeiro 2005

Autoria:

Paulo Melo
Escola Secundária da Maia
Paulo Melo
Escola Secundária da Maia

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