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Touch my back and I snore - Strike my back firmly to activate

É sabido que o inglês língua segunda tem suprimido e descaracterizado línguas e culturas através dos tempos, quer em países de imigração, como os EUA, quer nos países do vasto e etnocêntrico império britânico. Encontra-se agora entre nós, impondo-se-nos a cada passo.

O título deste artigo foi retirado, intacto, da aconchegada caixa de uma preguiça de pelúcia, exposta na montra de uma loja chamada Festyland, perto da minha casa. Ao redor da preguiça espalhavam-se profusamente jogos, materiais de desenho e escrita, guloseimas, produtos de decoração, higiene e beleza, todos ricamente embalados e devidamente apresentados em inglês americano: roller balls, wizard magic cards, ?The lost Jungle?- a dig & play dinosaur adventure game -, Marvin?s magic pocket tricks (dos Marvin?s magic presents), crazy maze puzzles, invitation cards, magical color-changing markers, a coloring book with stickers, a loose leaf in carrying case, a pump dispenser bottle set, a stick-on jewelry & ring set, a wrist watch, a mould & paint magical alphabet, e até mesmo a bathroom scale.
Na Festyland, os meninos podem comprar prendas - sobretudo mágicas - para honrar datas como Halloween ou Valentine?s Day, muito celebradas nas escolas portuguesas. Fazem-no em inglês, já que nomear e descrever são operações linguísticas básicas(1).
A montra da lojinha Festyland suscita-me alguma cogitação. Não vou aqui questionar a torrente caudalosa de empréstimos do inglês que abalroam a língua portuguesa nesta época de globalização. Os empréstimos são um fenómeno vulgar na vida de qualquer língua. Podem ilustrar-se, por exemplo, através do seguinte fragmento de um enunciado do Presidente da República, proferido numa conferência de imprensa para explicar a convocatória a Belém de Marcelo Rebelo de Sousa: ?[foi] para fazer a accountability do estado da arte em matéria de liberdade de expressão (?)?. Há neste fragmento um empréstimo lexical muito comum (accountability), ainda com a forma que tem em inglês, embora já um tanto foneticamente desmaiada. É certo que, por vezes, os empréstimos turvam o significado dos enunciados, deixando boquiabertos e desnorteados os ouvintes mais vernáculos; não obstante, a língua que realiza os empréstimos lá os vai integrando, com maior ou menor desconchavo. Por isso, por mais desfigurada, trapalhona e indigesta que se nos apresente a nossa língua num determinado momento, temos que pôr o coração ao largo, e dar tempo ao tempo.
Também não vou aqui tentar estabelecer correlações despropositadas entre tanto tráfego linguístico - oriundo também do Brasil - e um notório abastardamento do português em matéria léxico-gramatical; tal abastardamento, diariamente difundido em larga escala, parece consistir, em grande parte, na distribuição aleatória das preposições, na destruição sistemática dos pronomes clíticos e em impiedosas machadadas na flexão verbal, de que são lapidares emblemas interviu e estâjamos. Todavia, tais dislates correspondem a erros conversacionais naturais, resultantes de momentâneas falhas dos mecanismos psico-fisiológicos, agravadas pela comoção de estar no ar, a ser ouvido. Logo, temos que ser tolerantes.
Trata-se aqui, isso sim, de reconhecer o estatuto do inglês enquanto língua segunda em Portugal, estatuto que tem há séculos em territórios como o Uganda, a Samoa Oriental e o Kiribati. Uma língua segunda é aprendida para fins comunicativos, tem uso no comércio - também de bichos de pelúcia - e é marca colonial.
É sabido que o inglês língua segunda tem suprimido e descaracterizado línguas e culturas através dos tempos, quer em países de imigração, como os EUA, quer nos países do vasto e etnocêntrico império britânico. Encontra-se agora entre nós, impondo-se-nos a cada passo. A lojinha Festyland integra o cortejo ilusoriamente modernizador de mercadores de produtos, de ideias e de práticas sociais que se vêem legitimados pelo próprio uso da língua que impera no mundo. Quem não sabe bem essa língua, com as devidas distâncias da sua própria, corre o risco de ficar a ressonar como a preguiça de pelúcia. Temos por isso que nos manter alerta - para que não nos vendam gato por lebre (ou melhor, preguiça por urso?).
O próximo texto bissexto é da autoria de Paulo Raposo, que se debruçará sobre a definição de ?património imaterial?, recentemente debatida e criada pela UNESCO. Até lá, pois!

(1) Desconfio, ainda assim, que os meninos cujas mães são professoras de Inglês escolhem com maior esclarecimento as suas prendinhas.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

Ana Laura Metelo Valadares
Escola Superior de Educação de Lisboa
Ana Laura Metelo Valadares
Escola Superior de Educação de Lisboa

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