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O Puto

Não te imaginava assim. A verdade é que há muito te julgava morto. Variavam apenas as supostas causas do teu óbito: droga, hepatite, suicídio. Fiquei surpresa ? tão só ? ao saber que afinal estavas vivo e de boa saúde em Cabo Verde. A terra da tua mãe. Com a tua família materna. A trabalhar num hotel na Ilha do Sal. Ainda assim a notícia pouco me abalaria não fosse o mensageiro que a fez chegar até mim. Soube de ti pelo teu irmão.
O Puto, como tu lhe chamavas, era ainda na minha memória o miúdo castiço de 15 anos com quem tu vociferavas por nunca sair de casa, sobretudo nas alturas em que querias estar sozinho. ?Puto chato?, reclamavas tu sem perceberes o que tantas vezes me fazia ignorar-te quando o miúdo estava por perto. ?Dás-lhe trela e o puto não te larga?, protestavas sem já te lembrares que a adolescência é um estádio que merece atenção e paciência.
Dei de caras com o teu irmão num café onde ele trabalha como empregado de mesa. Ao primeiro vislumbre julguei ver-te. Demorei alguns minutos a associar aquele rosto ao do Puto. Até que ele sorriu e deixou definitivamente de ser parecido contigo. Era um sorriso sereno, sem o encolher de ombros artificial que tu lhe acrescentavas. Sem aquele teu olhar de gozo. Sem o esgaçar de dentes brancos e milimetricamente alinhados que mostravas sem pudor ao mínimo sarcasmo que te apetecesse dizer.
Teríamos ficado por ali se ao trazer o troco o teu irmão não me tivesse pedido para ficar um par de horas à espera dele já que estava mesmo a acabar o turno. ?Temos muito que conversar?, disse-me. A conversa não era uma das tuas actividades preferidas. Contigo os diálogos eram sempre reduzidos ao indispensável. Por isso ficou tanto por dizer entre nós. Tanto que acabei por cair na tentação de querer saber de ti pelo teu irmão. Esperei por ele.
Fiquei a saber que mesmo ausente ainda lhe dás cabo do juízo. Pois não há dia na semana em que não o tomem por ti. Sobretudo desde que faz atendimento ao público. Disse-me que mais constrangedor do que ter de aguentar a fúria de algumas pessoas a quem devias dinheiro ou tinhas roubado alguma coisa, era sofrer as investidas de um homem a balbuciar o teu nome.
Foi assim que o Puto disse ter descoberto a tua homossexualidade. Não perguntei como não tinha ele percebido isso há mais tempo. Contou-me que também se ria bastante com alguns dos enganos. Porque acontecia com certa frequência perguntarem, depois do equívoco desfeito, se tinhas ido para Cabo Verde fazer voluntariado. É incrível a quantidade de gente que deve ter passado pela tua vida sem te conhecer realmente. Voluntário, tu?
O Puto, não sei se vou continuar a chamar-lhe assim, o teu irmão já tem 24 anos, a tua idade quando te conheci, quis saber porque nos tínhamos zangado se éramos tão amigos. Não entrei em pormenores. Disse-lhe apenas que, na altura, tu te tinhas metido em negócios que eu desaprovava. E que tinha sido essa a razão de me ter afastado de ti. Ele não se mostrou curioso em saber mais e eu fiz questão de não revelar nada que pudesse macular a tua imagem aos olhos do Puto. Suspeito, porém, que para ele tu já não sejas bem o que eras quando ele ainda era puto. Afinal ele achava-te o máximo.
Perguntei-lhe se tinha namorada. E percebi que ele tinha perdido aquela tagarelice que aos 15 anos o fazia responder sempre da mesma maneira a esta pergunta: ?Muitas!? Disse-me simplesmente que tinha vivido com uma pessoa durante um ano, mas que as coisas não tinham resultado. Por isso estava de regresso à casa da vossa mãe, que tinha ficado felicíssima pois se sentia muito triste por estar sozinha. Ia aproveitar a estadia para acabar os estudos e dar ainda algum motivo de orgulho à velhota. Não acredito que a tua mãe já não se orgulhe dele. Mas admira-me a vontade dele de a agradar. O Puto é, nesse sentido, muito diferente de ti. Não poupaste a tua mãe a desgostos. Estivemos sentados até a tarde arrefecer. E pouco falamos de ti.


  
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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