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Falando de nós

Nas sociedades liberais em que vivemos, os mecanismos de censura são menos evidentes, embora eles façam sentir de forma permanente os seus efeitos nas nossas vidas quotidianas.

Após mais de quatro anos como parceiro-escrevinhador d?A Página, lembrei-me que talvez fosse interessante reflectir sobre o jornal e o modo como ele se posiciona no campo mediático, em jeito de balanço marcado pela discussão sobre a liberdade de opinião no país. Valerá a pena começar por aqui. Subitamente, na sequência da intervenção inábil do governo do Santana, parece que se descobriu que a livre expressão de opinião, nomeadamente nos media, está sujeita a mecanismos de censura e de pressão que colocam em causa direitos constitucionais fundamentais. Ora, a situação no campo mediático, bem como em muitos outros campos, é bem mais complexa. De facto, nas sociedades liberais em que vivemos, os mecanismos de censura são menos evidentes, embora eles façam sentir de forma permanente os seus efeitos nas nossas vidas quotidianas. De certo modo, ao mesmo tempo que a lei escrita garante a liberdade de expressão e de participação na vida pública, os mecanismos de censura são por ela obscurecidos. Por outras palavras, a ausência do lápis azul dificulta a detecção e a compreensão dos mecanismos subtis ? a ?invisível censura? como lhe chama Ignacio Ramonet em A tirania da comunicação ? que cerceiam a livre expressão de opinião e o exercício da cidadania no campo mediático.
Sem qualquer pretensão em hierarquizar os mecanismos censórios, começo pela propriedade. Não podendo escapar às lógicas que organizam a acção do capitalismo, também o campo mediático se confronta com a crescente concentração das empresas produtoras de informação e conteúdos mediáticos, sob o comando de grandes grupos financeiros e industriais. Neste contexto deixou de fazer qualquer sentido a pergunta sobre o modo como o poder económico controla a comunicação social. Citando Noam Chomsky, Serge Halami, em Les nouveaux chiens de garde, lembra-nos que, como acontece com a General Motors ou qualquer outra grande multinacional, o poder económico é, simplesmente, o proprietário dos media, ainda que a gestão possa não ser directamente exercida por ele. Como bem revela Berlusconi em Itália, a principal consequência que daqui decorre é o controlo do poder político num cenário marcado por ameaças severas às liberdades e garantias democráticas. A um outro nível, temos as restrições impostas pelo mercado. Exigindo recursos financeiros avultados, os media estão cada vez mais dependentes dos seus anunciantes. Ora, tal não limita apenas a liberdade de crítica em relação a quem publicita os seus produtos e empresas, cerceia também a crítica àqueles com os quais os anunciantes têm (ou desejam ter) relações comerciais, institucionais ou outras, como bem mostrou o caso Marcelo. Se este foi capaz de enfrentar a acção desencadeada pelos interesses por ele visados, sabemos bem que em regra as coisas são bem diferentes. Constituindo talvez a forma mais violenta, ao mesmo tempo que menos visível dos mecanismos de censura, a auto-censura a que se submetem os profissionais é imposta e lembrada a todo o tempo pela condição precária e a falta de trabalho a que estão sujeitos, alinhando-os passivamente pelas regras ditadas pelo poder económico que controla o poder mediático.
Dito isto, será certamente mais fácil discutir A Pagina no campo mediático. Propriedade da Profedições, uma editora que tem como sócio maioritário um sindicato com uma direcção comprometida com a produção e a concretização de propostas políticas anti-capitalistas, não determinada pelos constrangimentos impostos pelo mercado, entendo-o como um jornal de opiniões orientado para a reflexão compreensiva da realidade social no quadro da discussão crítica das alternativas emancipatórias que a todo o instante se constroem e jogam nos mais diversos campos sociais e geográficos do nosso mundo. Em lugar de se escudar numa espúria ?torre de marfim? da independência aparentemente livre de qualquer compromisso, A Página assume e pratica, ainda que por vezes se possa encontrar uma certa descoincidência entre a linha editorial e alguns contributos, um jornalismo de intervenção contra a corrente, cada vez mais raro mas cada vez mais necessário.
Como terão suspeitado, encerro aqui a minha colaboração regular com o jornal. As tarefas recém-assumidas no jornal do SPN, o SPN-Informação, são simultaneamente a razão e o pretexto para me afastar deste espaço de exercício da liberdade de opinião livre das amarras impostas pela propriedade, pelo mercado ou, muito simplesmente, como nos diz Bourdieu, pela ordem das coisas.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves
Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves

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