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A institucionalização do abandono escolar

Por  hiperescolarização da sociedade pretendo referir um desígnio político tendencialmente universal que se traduz  na crescente responsabilização da escola pela solução de todos os problemas sociais no pressuposto de que a ordem social e política será assegurada, ou, pelo menos legitimada,  desde que a todos os indivíduos que integram a sociedade sejam disponibilizadas as mesmas condições de desenvolvimento e  de auto-realização para poderem ser igualmente responsabilizados pelos seus actos.

A minha última colaboração n?a Página da Educação (Cf. nº 138 do mês de Outubro passado), ao abordar o fenómeno do abandono ou da desescolarização, afirmava em jeito de conclusão, que o fenómeno em referência  era o resultado paradoxal da hiperescolarização da sociedade actual que, por sua vez, traduz preocupações mais de ordem política que educativa ou socio-pedagógica. Porque se trata de uma questão com  vastas implicações no mundo social e profissional dos professores  e porque, mais vastamente, desafia  os fundamentos do funcionamento da escola pública, como a conhecemos, proponho-me retomar algumas vertentes da questão em  análise.
Por  hiperescolarização da sociedade pretendo referir um desígnio político tendencialmente universal que se traduz  na crescente responsabilização da escola pela solução de todos os problemas sociais no pressuposto de que a ordem social e política será assegurada, ou, pelo menos legitimada,  desde que a todos os indivíduos que integram a sociedade sejam disponibilizadas as mesmas condições de desenvolvimento e  de auto-realização para poderem ser igualmente responsabilizados pelos seus actos. No limiar remoto deste pressuposto está o princípio do Iluminismo que, no plano moral,  assevera que o  mal, o desvio e o erro  são função do subdesenvolvimento, da ignorância, ou do atraso  do mesmo modo que, no plano material, a pobreza, a miséria, a marginalidade social são fruto da incompetência individual.
A hiperescolarização, embora seja um fenómeno em parte relacionado com a massificação da escola, é-lhe posterior  e sobretudo qualitativamente diferente: - na verdade, a escola, à medida que  se defronta com as consequências da perda de influência das instâncias de socialização tradicional ? sobretudo, a família e a igreja ? confronta-se com uma crise funcional sem precedentes que faz depender a sua sobrevivência da simples lógica da concorrência, como se o investimento e o sacrifício de cada um fossem a condição da ordem de todos.. A política  dos ?rankings? é a expressão mais avançada desta tendência.
Ao ser forçada a entrar nesta lógica, primeiro em nome das competências impostas pelas exigências da sobrevivência económica e, mais recentemente, também em nome da  coesão e da justiça social, a  escola torna-se, enfim, refém duma relação esquizofrénica que só pode ser resolvida à custa da negação permanente do presente ao abrigo da crença  num futuro redentor que nunca chega...
É esta lógica que o fenómeno do abandono e da desescolarização denuncia, sobretudo quando se reconhece, como a realidade dos números demonstra, que a crença redentora no futuro que a  escola promete não está inscrita  nos genes dos destinatários da escola, mas é função duma relação que se constrói no quotidiano à medida que se desenvolve a experiência escolar. Só que essa possibilidade não cabe na lógica da hiperescolarização que, por definição tem que ser cada vez mais escola, mais avaliação, mais disciplina, mais competição. Como dizia, um aluno do secundário a propósito da vocação da escola nos nossos dias ?para quem quer continuar tem que estar pronto para se meter  na selva?. Daí que  a resposta ao problema do abandono escolar não possa ser resolvido no âmbito da escola que conhecemos, que é justamente a escola que provoca o abandono. Ela  implica  a criação de uma outra escola que  poderíamos designar sem ironia a escola do abandono, ou se quisermos a escola dos abandonantes, que são também os abanonados...
E esta, por mais incrível que isso se nos afigure, parece ser a solução que está contemplada no programa  ?Eu Não Desisto? que o Governo anterior criou e que, segundo tudo leva a crer, este adoptará. Trata-se duma verdadeira institucionalização da escola para os abandonados, cujo texto instituinte ? ?Plano Nacional de Prevenção do Abandono Escolar (PNAPAE)?, pela filosofia que adopta e pelas medidas que prevê, deveria merecer uma atenta discussão por parte de todos os profissionais da educação. Pela minha parte, continuarei a dar o meu contributo na próxima oportunidade.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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