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Construtivismo: a ordem discursiva das classes de alfabetização brasileiras

Uma das contribuições que as análises culturais tem trazido para a educação é a de ressaltar o caráter pedagógico de instâncias que operam para além dos muros da escola, outros tempos e espaços de produção de subjetividades, ao que parece até mais poderosos do que a educação formal, historicamente a cargo das instituições escolares. Isto é da maior relevância, sobretudo se considerarmos que quando as crianças chegam às nossas salas de aula já foram subjetivadas pelos textos culturais da mídia, que provê materiais dirigidos à produção de suas identidades sociais e a sua inserção nas chamadas sociedades tecnocapitalistas contemporâneas (Kellner, 2001). Contudo, os estudos culturais nos oferecem ferramentas conceituais para olharmos também para a educação escolar. O convite deste pequeno texto é justamente este: o de olharmos para a alfabetização de nossas crianças a partir de algumas contribuições que nos são oferecidas pelas análises culturais mais recentes. À revelia de uma crise sem precedentes na cultura da escrita (Sarlo, 2002), é para as classes de alfabetização que eu dirijo minha atenção.
Os últimos anos do século XX testemunharam a consolidação da pedagogia construtivista(1) como o discurso dominante na educação escolar brasileira. Desde a escola básica, passando pelos cursos de formação de professores de nível médio, até a universidade, o que se constata é a hegemonia de um discurso pedagógico que toma como postulados alguns axiomas da psicologia genética de Jean Piaget e, especialmente, porções do pensamento da argentina Emília Ferreiro, a quem se atribui a ?descoberta? do processo (psicogenético) de aquisição da língua escrita. Um contato mais estreito com professores e professoras da escola básica revela que seus conhecimentos acerca da epistemologia genética não vão muito além da capacidade de caracterizar os estágios de desenvolvimento estabelecidos pelo psicólogo suíço - sensório motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal. No que se refere aos saberes da psicogênese da língua escrita, a situação é bastante similar. De uma maneira geral, os departamentos pedagógicos e administrativos das escolas solicitam a classificação das crianças das classes de alfabetização nos chamados níveis de conceitualização da língua escrita - pré-silábico, silábico, silábico-alfabético, alfabético. De fato, desde as professoras mais antigas, com largo tempo de experiência alfabetizando crianças de todas as classes sociais, até as recém egressas dos cursos de formação de professores, todas são capazes de classificar seus alunos e alunas em um daqueles níveis, e mesmo discorrer longamente sobre a organização de uma sala de aula construtivista. Assim, pode-se dizer que o construtivismo estaria funcionando como o regime de verdade da educação brasileira contemporânea, estabelecendo certas regras, sancionando alguns enunciados e interditando outros tantos, regulando as ações dos professores e professoras, na medida em que estabelece um campo de visibilidade e de dizibilidade acerca das coisas da sala de aula.
Apesar desta unanimidade, não se pode dizer que esta pretensa formação ?científica? dos professores e professoras está garantindo uma sólida alfabetização das crianças brasileiras. Pelo contrário, a média de desempenho dos estudantes de 4ª série, auferida pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), de 2003, revela que 55% das crianças têm habilidades de leitura consideradas críticas ou muito críticas. Em outras palavras, as crianças classificadas como tendo habilidades de leitura em um nível muito crítico (18,7% dos estudantes brasileiros) não sabem ler. Aquelas classificadas como tendo habilidades de leitura de nível crítico (36,7% dos alunos) estariam relativamente confortáveis se freqüentassem uma 2ª e não uma 4ª série do ensino fundamental (Araújo e Luzio, 2004).
As noções de representação cultural e de produtividade discursiva (noções correntes no campo dos estudos culturais) podem ser úteis na compreensão do que está ocorrendo na educação brasileira. Sem entrar na polêmica discussão acerca da (in)consistência da formação dos professores e professoras, pode-se afirmar que eles e elas compartilham de um vocabulário comum, de um conjunto de conceitos e relações (expressos por palavras) que instituem os objetos que pretendem descrever (Foucault, 2000). Assim, a noção de um sujeito epistêmico, que eu preferiria chamar de sujeito cognitivo, se transfigura na criança natural que povoaria nossas salas de aula. Esta representação de criança natural, em contínuo (e ?natural?) processo de desenvolvimento, é princípio e fim da organização didático-pedagógica da sala de aula, isto é, das práticas dos professores e professoras. O que estaria ocorrendo é que aquela ordem discursiva que permite que algumas coisas sejam ditas (e feitas) e outras não, estaria a balizar, a normalizar, a regular as próprias práticas docentes. Em outras palavras, os professores e professoras já não estariam exercendo a histórica arte de ensinar, enquanto atividade intencional organizada, planejada, avaliada... Pelo contrário, a dita criança natural, a representação de sujeito cognitivo é que definiria a forma de agir docente. Neste sentido, dominados, presos a uma ordem discursiva que produz o sujeito cognitivo, os professores e professoras vão organizar o ambiente escolar para que este sujeito emerja, se manifeste uma vez mais e sempre no espaço da sala de aula.
É preciso destacar que dentro do conjunto de palavras e de enunciados interditados pela ordem discursiva que regula o discurso pedagógico corrente estão ensino e método. Ao que parece, elas não se coadunam com aprendizagem e prazer, outras palavras mágicas que compõem um difuso ideário compartilhado pelos professores e professoras contemporâneos. No meu entendimento, a situação é tanto mais dramática na medida em que as crianças das classes populares não têm acesso a uma formação suplementar que pode ser provida pelas famílias de classe média. Por outro lado, a máxima de que ?a escola deve ensinar a aprender?, cantada em prosa e verso pelos educadores mais progressistas, também compartilhada pelos professores e professoras construtivistas, pode ter conseqüências desastrosas, afinal, ?a escola não deve proporcionar somente uma máquina formal, mas também a substância que esta máquina processa. Afirmar que esta substância vem com as crianças, que a extraem da televisão, da experiência ou de suas próprias descobertas, implica sustentar uma espécie de autoabastecimento infantil que é, de todo, improvável. E, logicamente, reforça as desigualdades socioculturais de origem? (Sarlo, 2002, p. 105-106).

Nota:
Não cabe aqui uma análise do construtivismo como paradigma da educação. Tal discussão é desenvolvida competentemente na edição de agosto deste jornal. De acordo com o referencial teórico que sustenta minha reflexão, não cabe também discorrer sobre a heterogeneidade que o construtivismo assume em diferentes artigos científicos. Tomo o construtivismo como uma dimensão ordenadora, reguladora das práticas docentes, na medida em que sanciona algumas assertivas e coloca em circulação significados específicos que se pretendem generalizáveis. Neste sentido, não se discute o estatuto de verdade do construtivismo, mas sim seus efeitos de verdade. No caso brasileiro, a epistemologia genética piagetiana não é sinônimo de construtivismo, mas sua base teórica privilegiada. Em todo o caso, não se atribui à Piaget um conjunto de ditos compartilhados por professoras e formadoras de professoras que se autodenominam construtivistas.

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Carlos H.; LUZIO, Nildo. Leitura na Educação básica. Brasília: Ministério da Educação, 25 jun. 2004. Disponível em <http://www.mec.gov.br/news/Artigos> Acesso em 4 ago. 2004.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001.
SARLO, Beatriz. La escuela em crisis. In: SARLO, Beatriz. Tiempo presente: notas sobre el cambio de uma cultura. Buenos Aires: Siglo XXI, 2002.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 139
Ano 13, Novembro 2004

Autoria:

Luís Henrique Sommer
Licenciado em Pedagogia e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Luís Henrique Sommer
Licenciado em Pedagogia e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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