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Saudades da vida

Nunca em toda a sua vida tivera uma depressão. Só mesmo a morte para o pôr naquele estado lastimável de desolação. Ainda trazia na alma bem gravadas as palavras que tantas vezes ouvira por ocasião dos enterros a que assistia: "Mais mal é de quem fica!" Uma ova! Quem falava assim não estava seguramente morto. Mas havia de lá chegar. Ah, se não havia e depois é que ia ser bonito. - Ah, se não havia! Depois é que ia ser bonito?
O pior da morte era realmente não ter nada para fazer. Ou seja, o maior sonho dos vivos. Mas a sensação de inutilidade, para quem em vida tinha sido tão activo, deixava-o irritado. Profundamente. Sem remédio. Ou sem remédios. Porque ao menos os vivos sempre podiam engolir uns calmantes para aplacar o espírito. No seu caso, simplesmente não podia ingerir. Fosse o que fosse.
Ai as saudades que tinha de uma boa coxa de frango assada no forno com batatas douradas e arroz seco. Do vinho tinto, do branco e do rosé. No seu actual estado até uma murraça bebia. Ele que nunca se metera nos copos, lamentava agora não poder apanhar uma valente borracheira.  Ai a inveja que sentia dos bêbados tantas vezes criticados?
"Mais mal é de quem fica!" Que tristeza, os vivos só diziam disparates. Talvez por isso, como castigo, a morte impunha um silêncio meditativo. Não poder partilhar o desarranjo que lhe ia na alma, quase o fazia desejar não a ter. Os seus companheiros de morte eram muito metidos em si. Talvez remoessem nos seus pecados. O que não era o seu caso.
Sabia que não tinha levado propriamente uma vida "santa", mas também não tinha efectivamente levado uma "boa" vida. Porque simplesmente não tivera essa sorte. Acalentava, por isso, a esperança de vir a ser recompensado. De alguma forma. Sendo que a única compensação capaz de trazer a felicidade ao seu espírito seria a possibilidade de viver de novo. Mas suspeitava, e aí também a razão da sua depressão, que dificilmente isso lhe aconteceria. Na lista dos "a ressuscitar" haveria, com certeza, gente mais pia ou apta a servir o futuro reino dos céus. Até ao grande juízo final nada saberia. Teria simplesmente de esperar. Outra das grandes chatices da morte: ter de dar tempo ao tempo. Esperar pela degradação total do mundo, pelo apocalipse e pela conclusão do processo judicial eterno. Só então saberia a sua sorte. Fosse ela qual fosse. Nada era mais irremediável do que morte. E, nesse ponto, ainda concordava com os vivos.


  
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Edição:

N.º 139
Ano 13, Novembro 2004

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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