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A cunha e a amizade como formas de contratação de educadores e professores

CENTRALIZAR OU DESCENTRALIZAR O QUE?

Existe entre nós uma boa dose de provincianismo. Muito boa alma está convencida que o prestigio da sua cidade, vila ou aldeia, não passa pelo que é capaz de produzir, organizar e viver, mas por ter entre portas um organismozito do Estado. É nesse sentido que não há problema que não se resolva com uma reivindicação de descentralização. O país não tem consciência da sua pequenina dimensão, ainda se julga um império. E que tal descentralizar o Brasil, os EUA, a Rússia, a India, a China? à portuguesa? Esta coisa da regionalização tem que se lhe diga. Qualquer dia há mais organismos do Estado do que portugueses em idade de trabalhar. Agora oiço amigos de conselhos executivos reivindicarem a contratação dos professores por cada escola. Descentralizar, dizem. Não há dúvida, na alma de cada  português há sempre um patrãozinho escondido.

Portugal é conhecido por se colocar na parte cimeira das listas dos países onde existe mais corrupção. Possivelmente a corrupção em Portugal não é tanto a da compra de grandes favores, mas é sem dúvida a que resulta do pequeno favor, do compadrio, do afilhado, da cunha, da pequena influência. O caciquismo do final da monarquia e do início da República não desapareceu, só se refinou e adaptou às novas realidades.
Nós não abandonámos há tanto tempo como se pensa uma sociedade de servos e senhores. Uma boa parte da população portuguesa continua a manter intactos alguns hábitos da sociedade servil. É isso que explica que muita gente do povo se não sinta bem se não oferecer umas garrafas de tinto, o whisky velho, o cabrito, a perdiz? ao médico que se limitou a tratá-lo com profissionalismo e respeito. As professoras e os professores, sobretudo os do primeiro ciclo a trabalhar em aldeias, conhecem bem esta realidade. Quanta quinquilharia pavorosa não têm os educadores e professores de aceitar com um sorriso de embaraço e simpatia.
Na sociedade portuguesa a corrupção é particularmente pesada na esfera do emprego. Uma boa parte dos portugueses têm empregos adquiridos através do favor, da cunha, do amigo, do familiar, da pequena influência. Estudar a natureza das relações entre os trabalhadores dependentes de uma Câmara Municipal, por exemplo, ajuda a perceber o que somos e o que vai por aí. Somos bombeiros, maqueiros da ambulância, árbitros de futebol ou trabalhamos num centro de saúde porque temos um parente ou um amigalhaço bem colocado no meio.
A direita passa o tempo a pregar a bondade do mercado e a lisura das relações de trabalho no sector privado. Dizem que o mercado é exigente e não contemporiza com os favores. Ou se é bom e singra-se na carreira ou o mercado elimina. Nada de mais errado. Pelo menos em Portugal não se arranja um emprego no sector privado por se demonstrarem especiais aptidões para a função. Os filhos, os sobrinhos, os enteados, as noras, os cunhados, a prima do amigo? e por aí adiante, estão à cabeça da lista de candidatos a qualquer emprego com algum interesse.
Estas considerações foram-me ditadas por algumas reacções ao desastre dos concursos de professores e educadores. Não tem faltado quem aponte a descentralização dos concursos como remédio milagroso para a incapacidade de gerir a fácil colocação de professores. Ouvi amigos,  membros de conselhos executivos, a defender a contratação dos professores por eles próprios. Em nome da autonomia, claro. Ora isto mostra que se tem discutido pouco o que é a autonomia profissional, a autonomia da escola, a contratação e a mobilidade profissional. Exige-se por isso que estes problemas sejam mais estudados e nos deixemos de navegar à superfície.
Os «conselheiros de estado» da nossa praça, aproveitaram a ocasião para virem de roldão reafirmar a urgência de entregar a contratação de professores às Câmaras Municipais. Tudo isto, é bom de ver, em nome da democracia, da transparência, da eficiência, da qualidade do ensino e até da autonomia. Mas que democracia, que transparência, que lisura, que eficiência, que competência, que qualidade de ensino? Querem os educadores e professores escolhidos e contratados pelos Valentim Loureiro, Fátima Felgueiras, Narciso Miranda ou o impagável Avelino Ferreira Torres, entre outros também muito populares?
E contratação de docentes pelas Câmaras Municipais em nome de que autonomia? Do exercício livre e responsável da profissão docente? Da garantia de que compete a cada docente individualmente, nalguns casos, e colectivamente noutros, assegurarem o exercício e o cumprimento de uma ética profissional comum?  Em nome da autonomia dos docentes em gerirem a relação educador-aluno, educador-encarregado de educação ou educador-educador? De que democracia, lisura, transparência, competência e autonomia estão a falar os defensores da contratação municipalizada? Penso que a democracia e a autonomia são ainda o contrário do caciquismo e da subserviência.
Uma coisa é a contratação dos docentes. Outra é o direito e o dever que eles têm em produzir projectos educativos próprios e em se engajarem neles em plenitude. Uma coisa é tratar da contratação de docentes outra da sua mobilidade. Ter emprego e o direito de escolher com quem se quer trabalhar é uma coisa. Dispor do privilégio de contratar e dar emprego àqueles com quem nos apetece trabalhar é outra coisa bem diferente.
Uma das deficiências da nossa gestão educativa é a não separação clara da gestão administrativa da direcção e gestão pedagógica. Gestão pedagógica não é gestão administrativa, comercial ou fabril. Uma coisa é os professores e os órgãos de gestão pedagógica terem o direito de escolher, entre os seus pares, aqueles com quem querem desenvolver projectos educativos. Outra coisa é os órgãos de gestão pedagógica ou administrativa pensarem-se empregadores e contratadores de mão-de-obra. 
Os professores, como os médicos, juizes e outros, não são propriamente pessoal proletário. O exercício da profissão implica de facto autonomia e não as velhas formas de subordinação aplicadas aos proletários dos tempos da velha sociedade industrial.
Salvaguardar a autonomia docente não passa, de certeza, por criar no ensino as velhas dependências, os empregos de favor, a avaliação do mérito através das relações de parentesco, amizade ou cunha. Não passa pelo caciquismo municipal ou escolar. Não passa por feudalizar as escolas e as relações entre docentes. Feudalismo já nos basta o que teima em subsistir no nosso ensino superior. A meu ver, o acto educativo e a produção de saber, já não são compatíveis com a existência de senhores e vassalos.
Portugal é um país pequeno. Lisboa fica nos arredores do Porto. Ou será o contrário? Está tudo a dois passos de distância. Já temos courelas a mais e quintas a menos. Não se pode querer emparcelar o terreno agrícola e retalhar, ainda mais, o tecido social. Retalhar por retalhar fica-nos a todos muito caro.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 138
Ano 13, Outubro 2004

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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