Página  >  Edições  >  N.º 138  >  O Presidente Sampaio e a História de Portugal

O Presidente Sampaio e a História de Portugal

No dia 12 de Agosto último, o Ministro do Interior da Alemanha, em visita oficial, declarou publicamente sentir "vergonha, horror e raiva" por aquilo que militares das SS de Hitler fizeram numa aldeia da Toscânia, Sant'Anna di Stazzema, quando massacraram umas 560 pessoas, quase todas idosas, mulheres ou crianças. A "raiva" deveu-se ao facto duma investigação judicial sobre o caso só ter começado quase 60 anos depois, em 2002, por iniciativa das autoridades alemãs. As declarações foram citadas pela imprensa alemã e feitas a uma das estações de televisão do país, que as gravou e transmitiu.

No mesmo dia em que o Ministro do Interior da Alemanha declarava publicamente sentir "vergonha, horror e raiva" por aquilo que os militares das SS de Hitler fizeram, o Presidente da República de Portugal publicou o primeiro duma série de artigos de jornal sobre "o espírito dos Jogos Olímpicos e o nosso tempo". "Devemos aproveitar a ocasião", dizia ele, referindo-se ao retorno dos Jogos à Grécia no ano de aumento da União Europeia com 10 novos países, "para uma revisitação ao passado e assim tomar mais lúcida a percepção do presente". Sampaio viajava no navio-escola "Sagres" até ao porto do Pireu, um navio que "contribuirá", segundo palavras suas, "para lembrar" ao mundo "o papel pioneiro de Portugal na globalização" e "a vocação universalista da nossa história e cultura". Esta última é expressão de particular agrado do Presidente: noutro lugar do mesmo artigo, escreve que também "os nossos atletas [olímpicos] levam consigo a universalidade da nossa história".
Estas duas posições públicas, de dois representantes dos respectivos Estados, são outras tantas formas de acertar contas com o passado. De um lado, temos a lucidez e a coragem daquilo a que Derrida, em Os Espectros de Marx, chama "o estar-com-os espectros", ou seja, a capacidade de viver com os fantasmas da (in)consciência culpada, sem ver nesse processo de consciencialização uma ameaça à integridade da existência.
A Alemanha, enquanto Estado-nação, parece ter chegado a um momento histórico em que uma lúcida consciência colectiva dos crimes vividos e perpetrados por si perpassou para a instituição política máxima. Deve concluir-se, sem dúvida, que a destruição do país no final da Segunda Grande Guerra e a mais recente reunificação contribuíram, de forma crucial, para este ponto de chegada. Mas isto não retira significado e tremendo valor pedagógico ao processo alemão actual.
De outro lado, reivindicando aquilo que os alemães já possuem e portanto não precisam de reivindicar, isto é, "uma consciência histórica aguda", temos a auto-satisfeita declaração de "universalidade" para uma História, a portuguesa, que parece estar, para o Presidente, ao nível do Campeonato Europeu de Futebol: ambos, História e Euro 2004, estão presentes na memória para "reforçar o nosso nível de auto-estima". A ida do Presidente aos Jogos é toda ela concebida no sentido que acabo de sintetizar.
Basta pensar no próprio nome do navio-escola, "Sagres", alusivo a uma localidade portuguesa que, como se sabe há muito, nada teve a ver com as navegações do século XV. O Estado português, sintomatizado pelo seu Presidente, dificilmente há-de ignorar a História de si próprio, mas promove o esquecimento e a ignorância em nome da auto- estima dos portugueses.
Definindo a História de Portugal como de "vocação universalista", o Estado e o seu Presidente não suportam sequer o conceito de "vocação imperial" que a historiografia cultural séria atribui mesmo a algumas faixas de resistência (quanto mais às do poder) no Portugal do século XVI, o "tempo das glórias". Este é sinal claro de que temos uma nação a viver muito mal com o seu passado. O que o Presidente prova com o seu texto é que, ao menos para ele, é impossível a reclamada "revisitação do passado", a não ser que por ela se entenda uma revisitação já limitada pela "vocação universalista" que supostamente lhe subjaz. Por outras palavras (está ele a dizer), olhemos para o "nosso" passado, mas não o façamos para o conhecer, façamo-lo para confirmarmos perante nós próprios a nossa "universalidade"!
A História de Portugal foge a sete pés dos seus fantasmas. Não reconhece os inúmeros massacres perpetrados pelos portugueses na África, na Ásia e na América desde que Gomes Eanes de Zurara, ainda na primeira metade do século XV, conta o episódio grotesco do primeiro encontro entre portugueses e as populações da África subsariana, uns dez ou doze valentes armados às ordens do Infante D. Henrique contra um homem só, um africano que ainda assim se bateu valentemente (conforme conta o mesmo Zurara) para não ser morto ou escravizado. Não reconhece o desastre que foi a colonização portuguesa de 500 anos, mas aponta o dedo à descolonização, como se ainda não se pudesse imaginar sem império ou, como se diz agora, sem "lusofonia". Não reconhece as guerras civis, as hipocrisias, as traições, os filhos contra pais e os pais contra filhos ao longo dos séculos, logo desde aquilo que D. Afonso Henriques fez à própria mãe na Fundação.  A imagem de Portugal que o Presidente promove jamais poderá estar com os espectros e assumi-los como a realidade que são.
Agarrados, como a uma fina corda, a uma noção de Portugal cada vez mais esvaziada de sentido  ? de que um sintoma ironicamente trágico foi a comoção do Presidente pelo número de bandeirinhas portuguesas, afinal "made in Chin&", que o país ostentou nas janelas e varandas durante o Campeonato Europeu de futebol ? nós portugueses deveremos, segundo esta doutrina estatal-presidencial, ficar assim, pendurados até à última, para que o bolo não amargue. É esta a "consciência aguda" da História que o Presidente nos pede. Quando a corda rebentar de vez, a sua esperança, imagino, será a de que ao menos ele já cá não esteja para ver...


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 138
Ano 13, Outubro 2004

Autoria:

Hélio J. S. Alves

Hélio J. S. Alves

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo