A naturalização do ?sucesso/insucesso? na escola, que é a tradução cognitiva do ?self-made man? da visão teológica do ?dotado/não dotado?, inculca uma ideia de escola ainda incondicionalmente desejável, mas nem por todos alcançável. O insucesso é, então, vivido, experienciado e sofrido como um défice pessoal.
De há uns tempos a esta parte, mais concretamente a partir dos últimos anos da década passada, começou a circular no mundo escolar um novo vocábulo que, a pouco e pouco, se substituiu a um outro, até então dominante no mesmo quadrante semântico. O novo vocábulo é o de ?abandono escolar?, preferido pela linguagem técnico-admnistrativa, pelo menos a avaliar pela designação presente nos quadros estatísticos nacionais, ou o de ?desescolarização?, conforme vem preferindo a linguagem de investigação de influência francesa. Este novo vocábulo tem vindo a sobrepor-se ao de ?insucesso?, cuja ocorrência na linguagem comum e na problemática da investigação é cada vez menos visível. Esta mutação vocabular não parece traduzir apenas um incidente lexical no sentido de que a nova expressão seria mais ajustada para dar conta do mesmo fenómeno. Na verdade, o fenómeno do insucesso e do abandono não é o mesmo. Conforme salienta Dominique Glasman, que esteve recentemente entre nós e é um reputado investigador da questão, ?é conveniente separar ?insucesso escolar? de desescolarização. Nem todos os alunos com insucesso abandonam a escola, assim como nem todos os desescolarizados são mal sucedidos? (Ville-Ecole-Intégration Enjeux, n° 132, mars 2003). Por outro lado, para lá desta distinção de tipo empírico, parece haver uma diferença de tipo ideológico, imputável a uma mudança política e socio-organizacional da escola. Na verdade, a linguagem do ?sucesso/insucesso? como fenómeno de referência dominante da escola tende a conotar a escola como um espaço e um tempo marcados essencialmente pela lógica do progresso linear e objectivo (ou a sua negação complementar), como se esse modo de funcionamento lhe fosse exclusivamente inerente. A naturalização do ?sucesso/insucesso? na escola, que é a tradução cognitiva do ?self-made man? da visão teológica do ?dotado/não dotado?, inculca uma ideia de escola ainda incondicionalmente desejável, mas nem por todos alcançável. O insucesso é, então, vivido, experienciado e sofrido como um défice pessoal. Na linguagem do abandono e da desescolarização, é o próprio texto oficial que admite um tempo e um espaço de retrocesso, de recusa e de desvalorização da escola, o que supõe, pelo menos, a ocorrência de três fenómenos mais ou menos evidentes no sistema educativo. Em primeiro lugar, o alargamento temporal e social do ciclo de escolarização, tanto do obrigatório, como do secundário. No caso do ciclo obrigatório, esse alargamento é o responsável por um quarto dos abandonos; quanto ao secundário, o registo dos abandonos sobe até 44% dos inscritos. Em segundo lugar, a baixa expectativa quanto aos benefícios dos diplomas sobre as hipóteses de emprego, fenómeno tanto mais evidente quanto maior é a oferta ?precoce? de emprego, como acontece em determinadas regiões do norte do país. Em terceiro lugar, a degradação da própria experiência escolar, designadamente quando a gestão do currículo oferece passagens de ano quase administrativas e as propostas escolares não contribuem efectivamente para ampliar os reais conhecimentos dos alunos e as suas competências práticas. Desta experiência escolar negativa resulta, frequentemente, uma imagem auto-desvalorizada de si próprio, enquanto pessoa, a qual só é possível resgatar através da recusa da própria escola. A ocorrência destes três fenómenos na produção directa da desescolarização podem ser interpretados, paradoxalmente, como resultado do próprio processo da escolarização contemporânea, quando isso significa hiperescolarizar a sociedade na crença de que previne a marginalidade e promove a integração social. O efeito contrário, robustecendo o caudal da exclusão social e repondo o ciclo da desigualdade, faz do abandono uma causa cada vez mais social, conotada com a segurança e a prevenção da criminalidade, que torna bem evidente o quanto a escola está hoje comprometida com a gestão política do quotidiano da cidade.
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