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?Globalização, educação e luta contra a pobreza:os limites do mito do pescador?

Desde que o economista norte-americano Theodore Shultz nos revelou, em 1960, que a educação é mais investimento do que consumo, não há discurso de luta contra a pobreza que se preze que não ponha a ênfase nas vantagens da educação sobre a produtividade laboral, os ingressos e o estatuto social adquirido.

Diz assim um conhecido provérbio chinês: ?se um homem tem fome não lhe dês um peixe, ensina-o a pescar?. As políticas e estratégias de luta contra a pobreza parecem hoje fundamentar-se neste provérbio. Afastados de qualquer assistencialismo aparente, organismos internacionais, governos de todas as cores e inclusivamente várias ONG discorrem e planificam nessa linha. As cimeiras internacionais para o desenvolvimento exemplificam amplamente esta estratégia. Jomtien, Dakar, Johannesburgo, qualquer cimeira conclui, com louváveis e desejáveis objectivos, em favor de políticas que consigam ?activar? os pobres para lhes facilitar a sua inclusão social (em todo tipo de mercados, claro). A questão é preocupante, é claro, porque o número de pobres no mundo não deixa de crescer como consequência de um modelo de globalização que arrasa os excluídos como se de um furacão se tratasse. Os números são terríveis. Na América Latina por exemplo (a grande esquecida hoje do cenário mediático global), conta com 220 milhões de pessoas pobres (43% da população), dos quais 98 milhões são indigentes. O drama da África Sub-sahariana incorporou-se de tal modo nas nossas retinas que somos praticamente espectadores indiferentes perante as mortes por guerras, desnutrição ou SIDA. Uns números evidentemente inadmissíveis e de autêntica vergonha no século das tecnologias da informação e da comunicação.
Até ao momento, portanto, parece não estarmos a conseguir dar as canas adequadas, dado que não há nem uma boa cana nem pescaria para se satisfazer a fome. Do que não há dúvida é que ?a cana? por excelência nas últimas décadas tem sido a educação. Desde que o economista norte-americano Theodore Shultz nos revelou, em 1960, que a educação é mais investimento do que consumo, não há discurso de luta contra a pobreza que se preze que não ponha a ênfase nas vantagens da educação sobre a produtividade laboral, os ingressos e o estatuto social adquirido. Desta forma, a educação é também vantajosa a nível colectivo, posto que faz aumentar o rendimento nacional e a competitividade, contribui para o cuidado com o meio ambiente ou reduz os índices de criminalidade. Recentemente acrescentou-se a esta lista dos efeitos positivos da educação sobre a coesão social, o bom funcionamento das instituições (good governance) e  a cultura democrática.
Qualquer revisão da evolução dos números da escolarização, da esperança de vida escolar ou do nível médio de qualificação da população indica que os princípios de Shultz têm sido seguidos e de que a educação tem aumentado de forma notável em todo o globo. O que não deve esconder, é claro, que, porém, hoje não se alcançou ainda a universalização da educação básica em todo o planeta, e que, inclusivamente, irá ser difícil consegui-lo na data para tal fixada (2015) nos denominados ?Objectivos do Milénio? subscritos pelos países membros das Nações Unidas. Em todo o caso, do que não há dúvida é que o capital humano global aumentou sem que sejam observados os seus esperados benefícios sobre a redução da pobreza.
Porque é que tanta educação contribuiu tão pouco para a luta contra a pobreza? Obviamente que não há una única resposta para esta importante pergunta, mas merece a pena que nos detenhamos em alguns aspectos que nos podem ajudar a questionar os sempre inquestionados benefícios da educação para  a redução da pobreza.
1) Os limites da política educativa são evidentes se outras políticas sectoriais não actuarem na mesma direcção. Podem destinar-se muitos esforços no sentido de estender e/ou melhorar a educação que, porém, caem em saco roto se não houver uma política laboral, de saúde ou de desenvolvimento local que facilite melhores condições de vida e de possibilidades de inserção social. E, de facto, se a política económica e a política social não gerarem as condições para o aproveitamento das capacidades, só se consegue uma população mais educada, mas igual ou mais pobre.
2) Um dos efeitos da globalização sobre a educação tem sido o do aumento do nível educativo mínimo necessário para garantir a inclusão social e laboral. A CEPAL calculou que na América Latina são necessários pelo menos 12 anos de escolarização para conseguir escapar da pobreza. Parece claro, portanto, que a universalização do ensino básico não é já um objectivo suficiente. Esta necessidade de maior escolarização tem que ver com dois factores: a própria competência de qualificações (mais pessoas com maior nível educativo que competem pelos postos de trabalho) e com a transformação de uns mercados de trabalho que polarizam as remunerações: muito dinheiro para os altamente qualificados e salários muito baixos para os não qualificados. Por conseguinte, ou se consegue muita educação, ou aquela de que se dispõe pode ser claramente insuficiente.
3) O aumento de educação necessário para a obtenção de credenciais competitivas no mercado de trabalho deve obter-se, em muitos países em desenvolvimento, num contexto de crescente mercantilização educativa e de contenção da despesa pública com a educação. Políticas de recuperação de custos, programas de créditos que substituem políticas de bolsas, aumento da oferta do ensino privado, são lugares comuns nas novas políticas educativas. Este processo limita as possibilidades de acesso para determinados grupos sociais (especialmente desde a educação secundária em diante) e consolida níveis de qualidade muito distintos em função dos sectores de oferta e da força dos grupos de interesses para defender as suas posições de privilégio. Os limites da expansão educativa para reduzir a pobreza foram-no também para reduzir as desigualdades educativas.
4) Os processos assinalados anteriormente repercutem sobre o comportamento da procura. As necessidades económicas do local obrigam muitas crianças e adolescentes a interromper a sua trajectória escolar. O aumento dos custos directos e indirectos da educação e a necessidade de investir em educação durante mais anos produzem a revisão em baixa das expectativas das famílias mais pobres e o abandono prematuro do sistema.
Estas são apenas algumas das possíveis explicações dos limites do provérbio chinês. Talvez convenha que nos ocupemos não são só com aquilo que a educação pode fazer para combater a pobreza, mas também com os efeitos  que a pobreza tem sobre a educação. Talvez assim descubramos que mesmo que distribuamos muitas canas estas não são suficientes para pescar os peixes que subiram o rio muito para acima.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 138
Ano 13, Outubro 2004

Autoria:

Xavier Bonal
Universidade Autónoma de Barcelona
Xavier Bonal
Universidade Autónoma de Barcelona

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