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Jess Owens (Berlim, 1936)

No meio dos 4069 atletas presentes (dos quais 326 eram mulheres) aquele negro era, para os nazis, uma brisa insalubre que lhes tornava irrespirável o ambiente.

O nazismo avançava tumultuoso, embravecido, quando os Jogos Olímpicos de Berlim se efectuaram. Só um distraído ou um pateta poderia esperar dos Jogos apadrinhados por Hitler o espaço ideal para o desenvolvimento de relações cordiais entre as pessoas. Demais, os alemães, cegos pela propaganda e pelo fanatismo político esperavam que as competições olímpicas consagrassem os métodos e a doutrina nazi. Toda a Alemanhase embandeirara num delírio apoteótico! Para receber a juventude do Mundo inteiro, com valentes braços, para melhor a apertar contra corações plenos de amizade? Infelizmente, não! O que o Fuhrer pretendia era instrumentalizar os Jogos, ao serviço da sua ideologia expansionista e racista. Como um conspirador satisfeito, Hitler esfregava vulpinamente as mãos. Estava prestes a desferir um dos seus golpes.
Um negro, no entanto, iria estragar-lhe a festa; iria provar-lhe, sem necessitar de ocos arengadores e ardorosos jornalistas, que a raça ariana não era superior às outras. Daí que, no seu camarote, o Fuhrer, imóvel como estátua, mas de rosto entre severo e rancoroso, não disfarçasse o desespero pelas vitórias daquele negro que mesmo ali à sua frente, com um secreto rosto de vingança e de estrelas, espezinhava imparável  as suas teorias sobre a ?raça dos senhores?. Diante de um colored (suprema desfeita!) abatiam-se as bandeiras desfraldadas e o tropel faiscante de armas de uma das mais desumanas ideologias que o ser humano concebeu. No meio dos 4069 atletas presentes (dos quais 326 eram mulheres) aquele negro era, para os nazis, uma brisa insalubre que lhes tornava irrespirável o ambiente.
Esse negro chamava-se Jess Owens. Norte-americano, antes dos Jogos de 1936, já ele obtivera 22 segundos e 6/10, nos 200 metros; 10 segundos e 2/10, nos 100 metros; e 8,13 metros, no salto em comprimento. Agora, em plenos Jogos, no coração da Alemanha hitleriana, como quem procura derruir, nos seus fundamentos, enganosos cultos e sofismas, alcançava quatro medalhas de oiro: nos 100 e 200 metros, na estafeta de 4x100 metros e no salto em comprimento.
No dia 4 de Agosto de 1936, uma multidão heterogénea, densa de paixão e disciplinada pela ideologia omnipotente e omnisciente do Estado, aprestava-se para estender o braço e entoar em coro o Deutschland uber alles, esperando que o seu compatriota, o alto e loiro Lutz Long, arrebatasse a Jess Owens o primeiro lugar, no salto em comprimento. Owens, nessa mesma tarde, concorria também à meia-final dos 200 metros, que viria a ganhar, com superioridade incontestável (ante a raiva dos coriféus do nazismo) com o tempo de 21 segundos e 1/10..
Contudo, meia-hora depois, esperava-o o confronto com Lutz Long, o ídolo germânico. Hitler e a sua entourage não desfitavam os olhos do que se passava na prova do salto em comprimento. Logo no primeiro ensaio, Lutz é o melhor, com 7,84 metros; no segundo ensaio, continua em posição destacada, com 7,87 metros. Uma embriaguês colectiva, como um remoinho gregário, apossa-se dos espectadores. No rosto de Hitler, grudava-se-lhe nítido o ritus da vitória. Eis senão quando (ainda não se extinguira o rumor dos aplausos pelo salto do alemão) Owens emudece tudo e todos, no ensaio seguinte, com 7,94 metros e, por fim, com 8,06 metros, marca espantosa para o tempo e que lhe deu uma vitória mais! Ainda daquela vez, Jess Owens, um negro descendente de escravos, superava os arianos! Hitler mascavou uns sons guturais e desviou enraivecido a cabeça ? sofrera assim a sua primeira derrota!
Esta é, para mim, a mais bela página da História do Desporto!


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 138
Ano 13, Outubro 2004

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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