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A nossa educação precisa, desesperadamente, de estabilidade

Em Portugal, os «Assuntos da educação» já mereceram, da monarquia ao dia de hoje, a atenção de 106 ministros. Dos 106 titulares, apenas dois foram mulheres, Manuela Ferreira Leite e a actual Carmo Seabra.  Nos 134 anos que vão do 1º ao último ministro da educação tivemos tal cargo em 93 anos e seis meses. Em média, cada ministro teve direito a 320 dias de governo!

O primeiro Ministro dos Negócios da Instrução Pública, a merecer a honra de dirigir o ramo, foi António da Costa de Sousa Macedo. Ocupou o cargo de 22 de Junho de 1870 a 29 de Agosto do mesmo ano. Aguentou-se no cargo dois meses e sete dias! Os dois ilustres ministros que se lhe seguiram não tiveram melhor sorte. Ambos interinos, um ocupou o cargo durante um mês e o outro foi mais duradouro pois arcou com a responsabilidade durante quatro meses.
Depois desta primeira experiência de atribuição da categoria de ministério aos assuntos da educação seguiram-se dez anos sem ministério.
Em Abril de 1890 voltámos a ter ministro, desta vez com a pomposa designação de Ministro da Instrução Pública e Belas Artes. A experiência foi curta. Dois anos e quatro ministros, três dos quais interinos. Um ministro por cada meio ano.
Apesar de se lançar a crédito da nossa 1ª República um grande interesse pelo ensino, a verdade é que a elevação dos assuntos da educação a ministério só ocorreu a 7 de Julho de 1913 quando António Joaquim de Sousa Júnior foi chamado ao cargo de Ministro da Instrução Pública.
Nos 13 anos seguintes, a República brindou-nos com ministros em abundância, 51 Ministros! Média de um ministro por cada quatro meses!
Finda a República, a partir de 28 de Maio de 1926, a ditadura militar e o advento do Estado Novo foram também pródigos a produzir ministros da instrução pública. Entre 1926 e 1936 deram-nos 16 ministros da instrução publica! Um ministro por cada ano e meio.
Estabilizado o Salazarismo estabilizaram os ministros. Nos 34 anos que vão de 1940 a 1974 o Estado Novo disponibilizou-nos 10 Ministros da Educação Nacional. Mais de três anos por ministro!
Apesar desta abundância de ministros, Portugal chegou a 1974 com taxas de escolarização próximas das que os outros países Ocidentais tinham atingido oitenta a cem anos antes.(1)
No dia 15 de Maio de 1974 tomou posse como Ministro da Educação e Cultura (MEC) Eduardo Henrique da Silva Correia. Desde então e até hoje fomos abençoados com 26 ministros. Média de 420 dias por ministro.
Para além da curiosidade, servem estes factos para mostrar a precariedade em que os nossos «assuntos da educação» sempre viveram. Acresce que todos estes ministros precários se apresentaram no ministério com ganas de reformar o sistema. Todos lançaram mãos à obra de deitar abaixo o que estava, pensando em terraplenar o terreno onde iriam erguer o seu belo edifício educativo. Nenhum teve tempo de erguer fosse o que fosse e, quase todos, se limitaram a provocar escombros.
No final de  1971, era ministro do Marcelismo Veiga Simão, quando fui apanhado a moderar um debate sobre a proposta de reforma daquele ministro. No final desse debate, o já falecido Professor Armando de Castro perguntou ao ministro se ele acreditava mesmo que aquelas propostas eram para concretizar. Ao que Veiga Simão lhe respondeu: «não, mas vossa excelência sabe, que nas actuais circunstâncias, falar destas coisas já é muito importante». Trinta anos volvidos, nas actuais circunstâncias ? pensem na arrogância ministerial dos dois últimos anos ? dizem-nos que falar não vale a pena que é preciso é executar.
Lembro-me de uma reunião no MEC em Maio de 1975. Era ministro José Emílio da Silva,  um militar também licenciado em medicina veterinária. Depois de constatar-mos que um dossier que havíamos enviado por três vezes ao ministro não lhe tinha chegado às mãos, o ministro queixou-se, «sabem, isto não é um ministério, isto é uma máquina velha, pesada, ferrugenta, vinda dos primórdios da era industrial, não funciona». E eu, com o entusiasmo da idade e da época, sugeri-lhe: «vossa excelência deite-lhe óleo, bastante óleo». Ao que ele retorquiu de pronto: «nem pense nisso! O óleo dissolve a ferrugem, esta infiltra-se na máquina e então pára mesmo". Ora a velha máquina continua lá. Tem mais trinta anos de uso. Mais ferrugem. Mais acrescentos. Mais rodas paradas.
Perante este cenário de desencanto, muitos «conselheiros de estado», muitos «comendadores do regime» vão dizendo que é preciso um pacto de regime. Ora o que desesperadamente faz falta não é um pacto de regime mas estabilidade. A começar no ministério.
Desde o 25 de Abril de 1974 só dois ministros, Roberto Carneiro (17/8/1987 a 31/10/1991) e Marçal Grilo ( 28/10/1995 a 24/10/1999), o primeiro num governo de Cavaco e o segundo num governo de Guterres, exerceram o cargo durante uma legislatura completa. Mas para dar estabilidade ao ministério, seja qual for a orientação ideológica, é fundamental que o cargo não seja, como tem sido, ocupado por curiosos, por vaidosos, por ignorantes, por incompetentes sem escrúpulos. A actual troika é uma dor de alma.
Neste jornal (p. 27) o nosso colaborador Xésus Jares, da Universidade da Corunha, fala da abertura do ano lectivo e porque não está cá fala de esperança. De facto, como ele tão bem sublinha, a esperança é, ou deve ser, um elemento dominante na abertura de qualquer novo ano lectivo. Também nós educadores e professores portugueses, mesmo em tempos difíceis, ou talvez até por isso, iniciámos muitos anos lectivos com esperança. A actual maioria no governo, com a sua incompetência saloia, até isso nos roubou, roubou-nos a esperança.
Os educadores e professores, mesmo em tempo de desencanto, são sempre chamados a educar na e para a esperança. Tenhamos pelo menos a esperança que este próximo ano e meio passe depressa e que a troika nomeada por Santana para o ME fique quietinha a estudar os dossiers e a labutar nos próximos concursos. Quanto mais se mexerem mais estragam.
Tenhamos esperança que os interessados nos «assuntos da educação» aproveitem este interregno para preparar a estabilização do sistema educativo. É preciso estabilizar os professores nas escolas. Dotar as escolas e os professores de autonomia pedagógica. Acabar com o ensino unificado. Diversificar percursos escolares dando-lhes igual dignidade. Certificar com o mesmo valor todas as formas de aprendizagem dos alunos.  Liquidar o dualismo ensino geral/ensino profissional. Dar sentido e a mesma dignidade a todo o ensino. Devolver ao ensino superior a responsabilidade de admitir os seus alunos de acordo com os seus próprios critérios. Tornar comum, partilhada e conhecida uma ética profissional docente. É preciso, em suma, um plano de desenvolvimento da educação e do ensino em Portugal.
Neste início de ano lectivo, que a bem dizer não se iniciou, mantenho também a esperança de que o jornal a PÁGINA, seja capaz de contribuir, para discutir e gerar os percursos que devolvam a esperança na educação, não só aos educadores e professores, mas a todos os portugueses.

Nota:
(1) Esta realidade também ajuda a explicar os actuais maus resultados escolares. O ciclo da pobreza dos resultados escolares é muito semelhante ao da pobreza em geral. As famílias pobres têm dificuldade em não  produzir filhos pobres. As famílias de baixa ou nula escolarização tendem a reproduzir tal situação nos seus descendentes. A herança educativa fascista não acabou com o 25 de Abril, ela continua a fazer vítimas entre nós.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 138
Ano 13, Outubro 2004

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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