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O sentido das palavras

Justificaria  uma laboriosa dissertação verificar que, além de um significado, ou vários, que a mesma palavra pode conter, como  mostra qualquer dicionário,  ela revela um sentido que ultrapassa o seu valor de "uso" como instrumento de comunicação e que só se alcança quando o receptor se dispõe a penetrar no "âmago"  do emissor.
Concretizando: quando o chefe do Governo Regional da Madeira e o secretário-geral do Partido Comunista proferem a palavra Democracia; o líder da Confederação Geral dos Trabalhadores e o presidente da Associação dos Industriais falam em Trabalho; ou Francisco Louçã e Paulo Portas, em Liberdade; D.Policarpo e Mário Soares,  em Deus; Ferro Rodrigues e Ferreira Leite, em Estabilidade; José Saramago e Vasco Graça Moura, em Povo - não estão a falar da mesma coisa. Simplesmente porque a palavra, sendo reveladora de um sentido ideológico e/ou  de uma natureza de classe,  original  ou adquirida, é condicionante da visão do destinatário e determinante do objectivo da mensagem. Não é preciso regressar a Kant: diferentes olhares produzem diferentes objectos; diferentes classes produzem diferentes conceitos; e diferentes conceitos produzem diferentes vivências. Basta lembrar o que pensam  Bush e Bin Laden sobre o  Mal ou palestinianos e israelitas sobre o Terrorismo.
Mas, visível ou encoberto, tanto sentido  existe na palavra tida por adequada para mobilizar o destinatário, como na sua omissão. Por exemplo: fez-se moda dizer, em vez de Povo: Portugueses. Bizarramente, com o maior desapego pela Gramática, agora "sexualiza-se" a Nação, dizendo Portugueses e Portuguesas, ou, "cavalheirescamente",  ao invés...
Mas também há omissões e substituições verbais sintomáticas da ideologia e da classe. Um exemplo: numa dessas longas entrevistas requestadas pela Televisão, há tempos, um Ministro-ideólogo do Partido de Durão Barroso falou do País, durante cerca de uma hora, sem pronunciar a palavra Povo, mas repetiu a palavra Personalismo.
Referindo-se às qualidades dos falecidos Henrique Mendes e Maria de Lurdes Pintasilgo, o então indigitado novo Primeiro-Ministro Santana Lopes destacava, em ambos, o facto de serem muito elegantes, educados e não falarem mal de ninguém...  
Mesmo pelos socialistas, a palavra Socialismo é raramente proferida. Será porque, como disse, há anos, Mário Soares, o socialismo tinha sido metido numa gaveta, ou porque até os actuais epígonos de Marx, Engels e Lénin  se sentem suficientemente representados como Democratas, a despeito da "trapalhada" que é chamar Democracia a todos os jogos do poder (sendo eventualmente Aristocracia, Oligarquia, Plutocracia) menos ao poder do Povo,  que é o significado etimológico do termo?
Só ainda  o Povo ( essa "coisa" abstracta de cujo voto emana o Poder mas não tem poder) dá às  palavras o sentido que, sem ambiguidades, concretamente o definem: é Democracia a liberdade que ele tem de criticar, sem nenhuma "elegância",  os governantes  que o enganam e o obrigam a pagar as crises; é Patriotismo o entusiasmo com que vitoria a selecção  de futebol e desfralda a bandeira nacional; é Política o seu direito de recusar o  voto em Partidos que o desiludiram; é País aquele território onde nasceu e do qual se sente cada vez menos dono e senhor; é Nação aquela "res publica"  que, amalgamando ideologias e classes, em raros momentos de  inspiração  colectiva onde não tem lugar qualquer espécie de personalismo (o 25 de Abril, a independência de Timor, o Euro-94, o São João no Porto) se pensa univocamente Portugal.
É bom saber quem fala  o quê e para quem.


  
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Edição:

N.º 137
Ano 13, Agosto/Setembro 2004

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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