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Conversa tem a Joana muita

Gerir o tempo entre um ministério que já foi e outro que há-de ir

Dizia a minha avó, «conversa tem a Joana muita». E conversa era o que não faltava a David Justino, antes de ir a ministro. Na sua opinião,  os que o tinham precedido na pasta eram incompetentes, indecisos, laxistas, relaxados, irrealistas, desorganizados, gastadores. Faltava-lhes visão, competência, rigor, avaliação, disciplina, ordem. Para a educação não faltava dinheiro, disse-o ele muitas vezes. Faltavam gestores, certamente formados pelas juventudes centrista e social-democrata. O resultado? É o caos que se sabe. Conversa é coisa que não falta à nova dupla Santana e Paulo. O resultado? Revela-se dentro de momentos.

Apesar da Lei de Bases de 1986, Portugal não tem uma política de educação. Cada ministro que chega desfaz o que encontra e impõe a sua política que, normalmente, se reduz a meia dúzia de preconceitos e palpites. Podíamos pensar numa nova lei de bases se o objectivo fosse conseguir um consenso claro sobre os pilares e o rumo de uma política nacional de educação, para os próximos quinze ou vinte anos. Mas ninguém quer ouvir ninguém e, menos ainda, os que profissionalmente pensam e investigam o campo educativo.
David Justino já foi. Com ele foram também as duas almas que faziam de secretários de estado. Foram dois anos de trapalhadas como não há memória. Destruíram o que ainda ia funcionando. Pararam o que ia andando. Deixaram escombros nunca vistos. Nem um miserável concurso de professores foram capazes de fazer! Que Deus lhes perdoe que eu não posso.
Perante este cenário de destruição, mandaria o bom senso que se recrutasse alguém, com um mínimo de conhecimentos, sobre a matéria educativa. Mas não. Temos a ministra, uma economista especializada em telecomunicações. A secretário de estado dos recursos educativos, um psicólogo. A secretário da educação, um recém-nascido da juventude centrista. Desta vez a coisa vai. Vai ao fundo, mas vai.
A desculpa geral para todos os desmandos políticos destes dois últimos anos, foi a crise económica. Mais precisamente o déficit. Só que déficit, maior do que aquele que tínhamos em 2002, temos nós há um ror de anos. E a crise económica não justifica tudo. Não se lhe atribua a incompetência e desorientação governativa em áreas como as da saúde, da educação, da justiça, da cultura, do ambiente ou da segurança social.
Não há desculpa. As crises não são obra nem dons da natureza. Não são fatalidades ou cataclismos naturais. Não são da família dos ciclones ou dos tremores de terra. Não se abatem sobre nós por castigo divino. Existem, porque são promovidas por políticas. Vencem-se, por decisões e actos de natureza política. Ora cá pela terra, agarrado à tanga, o governo que agora se pisgou, limitou-se a esperar que caísse do Céu um nascituro que baptizou de retoma.
O governo da maioria de direita, na sua paralisia enervante, fazia lembrar um pedaço de lixo, caído à beira do passeio, esperando a chuva e uma forte enxurrada que o arrastasse para a sarjeta e depois, finalmente, o levasse, triunfante, até ao mar. Assim permaneceu até se ir embora, imóvel nas suas grandes movimentações. A seu lado, fiéis, permaneceram as elites económicas e os comentadores oficiais. Todos seguindo obsessivamente, os contornos e detalhes da suposta retoma. Convinha, no mundo real, não perder de vista a evolução efectiva do país. Mas perderam.
É próprio dos neoconservadores do nosso tempo apostarem tudo no mercado. Lester Thurrow, professor de economia e gestão do Massachusetts Institut of Technology (MIT), defende um liberalismo globalizado onde o Estado já não seja mais do que um mero aeroporto, ou seja, uma mera plataforma, um lugar de referência onde poisam e levantam os capitais que circulam livremente pelo mundo. A substituição total do Estado pelo mercado é o ideal destes novos patrões do mundo. Os neoliberais apontam o mercado como os antigos profetas apontavam os caminhos da salvação. É esta fé no mercado e nos negócios que explica a paralisia destes dois últimos anos de governo e a destruição a que o nosso Estado esteve sujeito.
E o que vem aí, é melhor?
O senhor Presidente da República ? com a sua reconhecida prudência ? decidiu empossar a dupla Santana e Paulo. Uma dupla a fazer lembrar a velha dupla teatral do Sr. Feliz e do Sr. Contente. Um abraço entre a fome e a vontade de comer. É difícil a este novo governo ser pior nos dois anos que tem pela frente do que o anterior nos dois anos em que parasitou o país. Mas unida, a dupla vai fazer por o conseguir. Parafraseando John Lukacs a hipocrisia é o cimento que vai manter a coligação unida e activa.
O novíssimo primeiro-ministro é um grande filósofo (ler p. 17). O cavalheiro ? vaidoso e gabarola do episódio que um dia o fez secretário de estado da cultura ?  é daqueles que não compreende que entre a obra prima do mestre e a prima do mestre de obras há uma substancial diferença. Ainda que a prima do mestre de obras possa ser uma obra prima. Se puder, é homem para inaugurar até uma catarata. O comparsa, agora reforçado na defesa pelos frutos do mar, promete ganhar protagonismo. Temos dupla. Temos governo. Para o povo, utilizando uma expressão brasileira, vão ser dois anos a «levar o gato à água» (coisa difícil).
Não só em Portugal, mas também por cá, vivemos num tempo que recuperou os deuses, os santos, as superstições, os patrões e os reis. É também um tempo de política plastificada, «fast-food», pronto a vestir, descartável. Um tempo em que a forma conta mais do que o conteúdo. Na cena política os actores não têm texto. Não precisam de trabalhar, de saber, nem de pensar. Basta-lhes uma piada, um sorriso composto, um fato à moda, um gesto estudado, uma pose de estado.
Desde que Santana começou a falar como primeiro-ministro e Paulo se tornou ainda mais hirto, não deram senão provas de um frenesim improdutivo, de uma vocação natural para «gaffes» institucionais.
Pela mão prudente do Senhor Presidente da República a irresponsabilidade chegou ao poder. O novo Governo é um aglomerado de gente, sem passado produtivo e que não percebe nada dos sectores que vai tutelar. Esta ideia de fazer um governo onde se misturam os amigos e as amigas com recém-nascidos recrutados nas maternidades, só porque os pais destes os inscreveram nas respectivas juventudes partidárias, é um perigo. Não é por o comporem com um avô na economia e um pai nas finanças que a coisa escapa. Estes mais velhos, parafraseando Pulido Valente, até iriam para ministros do Inferno se o Diabo os convidasse, para servirem a pátria e os donos dela.
Este Governo não tem nada a ver com o país real. É a resultante da combinação da impreparação e umbiguismo dos «lideres» com as múltiplas relações de poder e de interesses que o cercam e se preparam para o sustentar, enquanto houver alguma coisa para sugar. É uma irrealidade. O problema é que atrás dessa irrealidade, se perfila a realidade bem real de um país carente de rumo e de condução política, competente e séria. Nos últimos dois anos, os bens de luxo foram os únicos que viram aumentar o seu consumo. Mas é neste país que há mais de 200 mil portugueses com fome. Mais de dois milhões vivem abaixo do limiar da pobreza. 79,4% têm menos habilitações do que a escolaridade obrigatória. Apenas 11,3% concluíram o ensino secundário. Só 9,4% completaram um curso superior. 45,5% abandonam a escola antes de concluir o ensino básico. Apenas 2,9% dos trabalhadores faz formação profissional. Mais de 100 mil esperam por uma cirurgia. Mais de meio milhão não tem trabalho. Milhares de jovens, com ou sem habilitações, desesperam à procura de um trabalho, uma promessa de profissão, uma carreira. É por todos estes, pelos que hão-de vir e também pela nossa honra que não podemos ser neutros nem ficar calados.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 137
Ano 13, Agosto/Setembro 2004

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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