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Lei de Bases da Educação: um novo mundo de perplexidades (II)

A invocação em registo protagonístico da sociedade do conhecimento ou da informação, ou ainda, da sociedade cognitiva, como referencial do suporte englobante do novo  sentido da Educação, significa  adoptar um ponto de vista que se absolutiza, isto é, que se apresenta como se sobrepondo a todos os outros, tornando-se, portanto, indiscutível.

A propósito da iminência da aprovação no Parlamento da Lei de Bases da Educação, apenas com os votos dos partidos da coligação de direita, entretanto já ocorrida,  sustentávamos no número de Maio de ?A Página? que a ocorrência dessa possibilidade representaria uma lástima para a democracia portuguesa num domínio tão decisivo para o desenvolvimento da sociedade portuguesa com o é o da educação.
A argumentação então aduzida tentou pôr em evidência que para as forças da direita o que foi privilegiado como central na legitimação duma nova ordem educativa  foi a imperatividade dum mandato cognitivo inerente ao que o texto do governo recorrentemente designa por ?sociedade do conhecimento?.
O facto de o texto em referência ter privilegiado essa perspectiva em detrimento de outras, designadamente das que vinculam a educação à ordem política ou social, é em si mesmo significativo.
É para dar conta dessa significatividade que se traz  de novo à liça a questão em referência, como então se prometera.
Em primeiro lugar, a invocação em registo protagonístico da sociedade do conhecimento ou da informação, ou ainda, da sociedade cognitiva, como referencial do suporte englobante do novo  sentido da Educação, significa  adoptar um ponto de vista que se absolutiza, isto é, que se apresenta como se sobrepondo a todos os outros, tornando-se, portanto, indiscutível. Este ponto de vista joga claramente com a constelação semântica constituída pela tríade  ?escola/conhecimento/saber? por força da qual se torna óbvia  a eminência do conhecimento como sendo um produto natural da escola. A naturalização desta relação traz consigo um segundo significado, facilmente  assimilável  pelo senso comum, que é o reforçamento da escola como  agência  de legitimação das diferenças num contexto em que as variáveis sociais já não são determinantes no acesso à escola. Por esta via, as diferenças face à  sociedade do conhecimento tendem a ser interpretadas como variáveis de ordem individual, o que por um lado justifica  e agudiza os mecanismos da avaliação e os  processos de elitização dos percursos  escolares e, por  outro, alimenta a lógica dos fluxos flexíveis da escolarização, assumida como a expressão da justiça escolar na medida em que traduz uma prática política que diz ter  em conta as possibilidades e as condições ?naturais? dos alunos.
Um terceiro significado inscrito no mandato da sociedade do conhecimento aplicado à escola, tal como a doutrina da nova Lei de Bases da Educação o concebe é, num primeiro momento,  a aceitação da correspondência objectiva entre conhecimento e saber disciplinar (curricular) da  escola; num segundo momento, a redução de  todo o conhecimento  a informação e, finalmente,  a completa indiferenciação entre  conhecimento, informação e comunicação.
Este ciclo de operações simbólicas entre sociedade do conhecimento e processos de escolarização pressuposto no texto governamental  é uma tentativa  de aplicação  -  valha  a verdade que um tanto atabalhoada ? da doutrina da ?sociedade da informação?, considerada por muitos sectores da cultura contemporânea como a verdadeira expressão da era pós-moderna. Nos termos duma tal doutrina e a fazer fé no modo como a define M. Castells, o capitalismo industrial estaria condenado a ser substituído pelo capitalismo informacional, significando  isso que o futuro das  relações de produção e das relações de classe ficaria dependente dos detentores do saber e da informação, assumidos como  a base  do novo processo de produção.
Esta tese, cuja força ideológica não cessa de ampliar-se, repercute-se no mundo escolar  de forma devastadora  de que a expressão mais visível é a consagração duma concepção de saber cada vez mais  disciplinar  e disciplinarizante, isto é, redutível a fórmulas ?incondicionalmente condicionadoras? do adestramento mental  e social dos  alunos de que resultará, em última análise, um mundo  mecânico  ?totalmente administrado?. A hiper-escolarização da sociedade a que vimos assistindo é um primeiro sinal preocupante enquanto significado duma forma de cultura escolar que é tão invasiva da vida quotidiana dos cidadãos quanto implacável para todos os  que não se sujeitem aos seus códigos universais de excelência...
Se o simples bom senso enjeita que a solução esteja na recusa pura e simples da cultura informática, tão pouco será de  admitir que a doutrina que dela se  aproveita possa olimpicamente  ditar as suas conveniências, como se de novos dogmas se tratasse. Trata-se de um novo bezerro de oiro que importa acometer...


  
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Edição:

N.º 136
Ano 13, Julho 2004

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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