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A responsabilidade de aprender a ser herdeiro

O TERRITÓRIO COMO LUGAR DE PERTENÇA

Por uma hora, um homem existiu fora de todo o horizonte ? tudo era céu à sua volta, ou, mais exactamente, tudo era espaço geométrico. Um homem existia no absoluto do espaço homogéneo.  
(Emmanuel Levinas, 1990)

Levinas expressa assim a sua admiração por Gagarine, o homem que se atreveu a abandonar o lugar de nascimento e de enraizamento. Mais do que a exaltação das possibilidades da tecnociência ou a afirmação de uma coragem pessoal, a aventura do astronauta simboliza, aos olhos do filósofo, a capacidade humana de desprendimento em relação ao mundo conhecido. Por uma hora, um homem existiu num mundo sem o verde da paisagem ou o azul misterioso do mar, sem o calor de uma casa, sem a palavra, o olhar ou o sorriso de gente próxima. Um mundo despovoado de lembranças familiares, de lugares de culto, de coisas possuídas, de leis e de tradições fecundadas numa memória social.
A convicção de que o homem desenvolve o sentido da sua humanidade através da conquista de uma soberania pessoal, assente na capacidade para aprender a pensar, a decidir e a agir autonomamente, constitui um dos pilares fundamentais da razão pedagógica e um dos pressupostos que sustentam o ideal de uma cidadania universal. E todos os seres humanos possuem o direito, e o dever, de procurar ir sempre mais além. Resta saber se este processo obriga à ruptura de laços com o lugar habitado, ou se, pelo contrário, é indissociável do sentido de pertença a uma terra, a uma história, a uma língua e a uma rede social tecida na relação com parentes, vizinhos, amigos, colegas, concidadãos.
Um homem que vive num deserto de memórias e de afectos é um homem mais livre? Qual a pertinência de uma educação inscrita numa lógica territorial, alicerçada em valores como comunidade, património e desenvolvimento local?
Considerada na pluralidade das suas dimensões, geográfica, económica, cultural ou política, a noção de território remete-nos sempre para a existência de um espaço partilhado, feito de tradições, de costumes e de valores herdados. Num tempo de globalização e de sociedades digitais, num tempo de multi-pertenças, a valorização pedagógica desses espaços parece-nos de importância vital. Contudo, para que sejam efectivamente respeitadas, para que possam manter-se saudáveis, as raízes comunitárias precisam ser permanentemente regadas pelo espírito inconformista e reflexivo.
Como lembra um outro filósofo, Jacques Derrida (2001), a melhor maneira de ser fiel a uma herança cultural é ser-lhe infiel, sujeitando-a à prova da sua actualização permanente. Os valores recebidos só ganham vida, só adquirem sentido, quando relançados e reafirmados num contexto de problematização exigente. É aqui que entra a responsabilidade do herdeiro, a de aprender a manter uma herança viva, apropriando-se criticamente dela e, como tal, fazendo-a sua. De contrário, as raízes identitárias passam a servir para fecundar os terrenos da intolerância, do egoísmo e do obscurantismo. O medo, a insegurança e a violência tomam então o lugar da confiança, da paz e do desejo de viagem até outros mundos.
Caberá, pois, à educação, na pluralidade das suas formas e contextos, promover a responsabilidade de aprender a ser herdeiro, simultaneamente fiel e infiel. O que, antes de mais, exige que o património herdado seja dado a conhecer. Dentro e fora da escola, importa cuidar dos tempos e espaços necessários à aprendizagem dos sinais que marcam a passagem do homem pelo mundo e que fazem a identidade dos lugares. Só assim nos tornamos capazes de ajuizar autonomamente, aprendendo a interpelar a natureza e tudo quanto a tradição nos apresenta como natural. É este, afinal, o sentido da ruptura que suporta os actos de liberdade, como o de Gagarine ao aventurar-se no infinito dos céus.


  
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto

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