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O que se passa com aquilo que nos passa?

Sou negro! Sou negro! Quero ser negro! Gritava meu silêncio perturbador. Como pude viver tanto tempo sem essa parte de mim? Sou cristão, sou macumbeiro! Sou tupi! Sou zumbi!?

1- Traduzir por escrito o que se passou comigo por ocasião de uma visita ao Quilombo da Fazenda São José (1) é a tarefa que me coloco. O motivo de minha visita era acompanhar a uma amiga pesquisadora que prepara uma tese de doutoramento sobre os  processos de transmissão cultural nos grupos de jongo.
Nossa visita se dava em um dia especial. Dia em que Teresinha Fernandes assumia o lugar da antiga matriarca que morrera dias antes. Encontravam-se presentes no local pesquisadores e pesquisadoras de outras regiões do país que como eu e minha amiga estudam as questões culturais e raciais.  Nossa rotina de trabalho estava indo bem quando de repente fui atropelado pelos meus pensamentos, mais especificamente na hora da missa negra que estava sendo celebrada. 
2- Sou negro! Sou negro! Quero ser negro! Gritava meu silêncio perturbador. Como pude viver tanto tempo sem essa parte de mim? Sou cristão, sou macumbeiro! Sou tupi! Sou zumbi! Como pude desprezar meus deuses e a cultura de meus antepassados africanos, ameríndios, e só ter querido descender de meu avô português? Por que, sendo tudo, quis apenas ser um dos muitos que posso ser?  Ser e ser, eis a minha questão!
Minha cabeça rodava. Meu corpo tremia. Chorava! Gozava! Não eu, mas, o mundo é que gozava em mim. Era eu me parindo, me partindo e me ajuntando nos meus mil cacos.  Seria eu, naquele instante, o Anjo de Paul Klee? Não sei, só sei que era eu, tomando consciência de mim e de minhas ruínas que se amontoavam todas ali aos meus pés. Penso que, mais que anjo, fui Macunaíma, metáfora que me ajuda a compreender que negro  é apenas uma parte de mim e nunca eu inteiro. Como ele, sou isto e aquilo: às vezes branco, às vezes preto, às vezes índio? Fronteira que une ou separa o quase tudo e o quase nada, um lugar de emergências.
3- Na missa que foi celebrada para empossar Mãe Teresinha , fui tomado de uma forte emoção pois era a primeira vez que via juntos a  mãe de santo e o padre, a macumba e a missa. Que via o altar quase gongá, O gongá quase altar. Que me  percebia quase católico, quase macumbeiro. E que, finalmente começava a compreender o que é viver nas fronteiras de uma sociedade híbrida, carnavalizada. Entendia ainda por que caminhos deveria passar a nossa revolução cultural: a de que não existe pecado do lado debaixo do equador e que Deus aqui só acerta se souber escrever sobre linhas tortas e no avesso da lei.
4- Naquela missa tremia de medo, meu coração se acelerava. Dançava. Cantava. Sobretudo pensava: como pude viver meio século de minha existência apartado de mim, sem me dar conta de que eu também era um homem negro, como tantos outros homens e mulheres de meu país?
Confesso, tive medo da resposta, mas mesmo assim me respondi: Eu não nasci assim, fui educado assim. Mas por que, continuava a me interrogar, desejei e vivi como branco por todo o tempo? E mais uma vez temi a resposta. Quis ser branco ? e, a essa altura, lembrei-me de Fanon ? porque quis ser homem, porque no meu país só é respeitado e vive feliz quem é branco. Eu queria ser feliz, não ser maltratado, ter boa escola, ter boa casa, e não morar num mocambo, quis estar nos salões. Não queria ser revistado a todo momento pela polícia e ser sempre potencialmente suspeito. Enfim, eu não queria abrir mão do direito de ter direitos. Foi por isso que traí, que neguei e que negociei em meu silêncio a minha invisibilidade. 
5- A missa chegava ao final, mas meus pensamentos não. Como um bom cristão e recém convertido ao umbandismo, ajoelhei-me e maldisse a Deus. Acho que ele me compreendeu. Depois... pedi perdão a mim e a todos aqueles homens e mulheres, irmãos e irmãs de minha cor, que ali estavam. E acho que eles também me compreenderam.

Nota:
(1) O Quilombo da Fazenda Sâo José fica no município de Valença, Estado do Rio de Janeiro.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

Carlos Roberto de Carvalho
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação da Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil
Carlos Roberto de Carvalho
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação da Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

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