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Uma Breve Reflexão Crítica

PAULO FREIRE

Paulo Freire (?), alfabetizou-se, como ele próprio disse ?no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras com palavras do meu mundo e não do mundo maior de meus pais. O chão foi o meu quadro negro; gravetos, o meu giz?.  (Freire, 92:15)

Paulo Freire foi sobretudo um político militante e um filósofo que tinha ?raiva? (a expressão é mesmo dele), à exploração e à opressão e que recorreu à educação como estratégia válida numa cruzada utópica pela dignificação dos seres humanos oprimidos. 
Apesar de ser mais conhecido como pedagogo, arriscaria a defesa de uma valorização maior de Freire como político, no sentido mais amplo, etimológico e puro da palavra, distanciado da carga formal e burocrática que, frequente (e justamente), se atribui a este conceito. 
Este ?militante?, como ele próprio se designava, que não queria anestesiar o ímpeto que considerava necessário ao seu trabalho, tinha raiva à pobreza e à exploração e, através de uma acção impregnada por um profundo respeito pelo outro, foi elaborando as suas propostas de uma forma muito próxima do seu trajecto pessoal, pelo que acredita-se que o seu percurso biográfico pode ter contribuído para fortalecer muitas das características que se podem ir identificando na sua obra.
Paulo Freire, que era católico, foi criado num ambiente familiar terno e solidário. Alfabetizou-se, como ele próprio disse ?no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras com palavras do meu mundo e não do mundo maior de meus pais. O chão foi o meu quadro negro; gravetos, o meu giz?.  (Freire, 92:15) (Note-se a referência ao ?meu mundo? e não ao ?mundo maior de meus pais?).  E foi este menino Paulo que, crescendo, se foi transformando em alguém afectiva e efectivamente ligado ao mundo e às preocupações e saberes daqueles com quem trabalhava, preocupado com a qualidade de vida dos outros e que, porque os respeitava, se indignava com as situações de miséria e de exploração a que os via submetidos. Alguém que ia identificando em que medida a educação poderia colaborar com a permanência destas situações de injustiça social. Foi este seu modo de trabalhar a educação que fez com que, com a ditadura militar, ele fosse preso e posteriormente tivesse sofrido um longo exílio.
A valorização da ligação ao mundo de cada um, aos seus valores, saberes e problemas reflectiram-se na forma como trabalhava e concebia a sua acção e, sobretudo, no modo como desenvolvia e discutia o conceito de cultura ? conceito central para as suas propostas de alfabetização de adultos, que o tornariam mais conhecido no Brasil e em quase todo o mundo.
No mundo dito ?civilizado? é consensual atribuir-se uma enorme importância à aprendizagem da leitura e da escrita. O domínio destes saberes é considerado tão central para a sobrevivência na sociedade que, por vezes, nem se identifica o carácter algo etnocêntrico deste tipo de opção e de julgamento. É então interessante notar a forma cautelosa como Freire aborda esta questão, podendo admitir-se que parece estar intimamente relacionado com o conceito de cultura que, numa perspectiva antropológica, operacionalizou nos seus trabalhos. Para Freire cultura é tudo o que resulta da acção humana sobre o que é natural. Assim, todo o homem ou mulher que interage intencionalmente com a natureza está a produzir cultura, pelo que tanto é produção cultural arar a terra, trabalhar a madeira ou limpar os lixos, como produzir um texto literário, pintar um quadro ou conceber uma peça musical.
Esta perspectiva teve uma influência decisiva na forma como Freire desenvolveu o seu trabalho de alfabetização, organizado de acordo com aquilo que foi designado ?método Paulo Freire? e que visava sobretudo contribuir para o que chamou de ?conscientização? dos alfabetizandos. Bem sintomática das preocupações que orientaram os seus trabalhos foi o facto de, quando em Angicos ele se propôs em 40 horas alfabetizar 300 camponeses, destas ter despendido 10 horas para debater com os aprendentes o conceito de cultura.
Freire sabia e defendia que a educação não pode resolver todas as situações de desigualdade e de exploração do ser humano. Mas defendia também que sem educação, dificilmente essas situações de desigualdade se poderão vir a alterar. Daí a sua aposta e a sua funda e vastíssima intervenção neste campo.
Deste modo, num mundo em que as situações de exploração, insegurança, privação e sofrimento são cada vez mais visíveis, podemos admitir que a análise crítica e recriação dos contributos dados pelos trabalhos de Paulo Freire se mantém, indiscutivelmente, muito actual.

Referências Bibliográficas:
Freire, P. (1992). A importância do Ato de Ler. Cortez Editora: S. Paulo.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

luiza Cortesão
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Univ. do Porto, Presidente da Direcção do Instituto Paulo Freire de Portugal
luiza Cortesão
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Univ. do Porto, Presidente da Direcção do Instituto Paulo Freire de Portugal

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