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Regresso ao passado com vénias de subserviência

LEI DE BASES DA EDUCAÇÃO

A crise dos sistemas educativos é um fenómeno mundial. Com luz própria nas sociedades mais avançadas. Mas é um problema de países pobres e ricos. Em Portugal ? até pelo atraso provocado por meio século de obscurantismo fascista ? a nossa crise é maior porque soma os problemas dos países do centro aos dos países da periferia. Em Portugal temos os problemas dos países desenvolvidos sem nos termos ainda desembaraçado dos problemas dos países pobres. Esta é a nossa realidade, aquela de que deveríamos partir para encontrarmos soluções para os problemas e realidade que temos e para o queremos vir a ser.
Desgraçadamente, em vez de partirmos do que somos, preferimos importar soluções e avançar à toa. Continuam a dar-nos políticas assentes em mitos e preconceitos. Cada equipa ministerial considera-se mais iluminada do que todos as anteriores e vai de arrasar o que encontram e de proclamar a salvação do sistema. O que fica? Mais burocracia. Trapalhada. Problemas. Desmotivação. Confusão? cada vez mais confusão.
Quando precisávamos de respostas novas, eficazes, felizes, ajustadas à nossa realidade, ao nosso tempo e aos desafios que a nossa sociedade nos coloca, eis que o Governo nos acaba de brindar com uma «nova» Lei de Bases da Educação. É mais uma Lei inútil que nos ameaça fazer andar para trás.
Desta vez, nós professores e alunos, estaremos com sorte e com azar.
Sorte porque este Ministério não parece ter tempo de por a lei em vigor. Estamos em Junho e, até Outubro, o ME não parece capaz de fazer mais do que tentar dar andamento aos concursos de professores. Se fizerem os concursos sem mais trapalhadas serão um milagre da natureza. Há indivíduos que são fenómenos da natureza por conseguirem andar com os pés no chão e as mãos no ar. Este ministério será um fenómeno da administração se conseguir fazer uns sofríveis concursos anuais de professores.
Azar, porque os professores continuarão o processo de desânimo e os alunos continuarão a sofrer as consequências de um mau sistema educativo.
O senhor David Justino entrou no ministério com o vigor próprio da ingenuidade, ignorância e arrogância. Ia reformar o sistema de alto a baixo. Rigor, austeridade, avaliação e competência, eram conceitos repetidos. Ia ficar na história da educação. Ele mesmo o disse, «nunca se fizeram reformas tão profundas na história da educação em Portugal!».
As suas reformas encaminharia o sistema educativo, pelo menos, até 2050! Mas a verdade é que, David Justino, tem uma mentalidade formada por muitos preconceitos, ideias soltas e desconexas, muito voluntarismo, pouca formação e informação sólida, um senso comum ranhoso, paradigmas envelhecidos que ele toma por novos, enfim, uma mentalidade antiquada e confusa. Tropeçou no primeiro degrau e não mais se equilibrou. A sua Lei de Bases reflecte estas contradições, confusões, fragilidades, preconceitos e paradigmas. Com ela apenas aprenderíamos a andar para trás fazendo vénias servis à hierarquia.
As sociedades mudaram de forma acelerada a partir da década de sessenta. Para trás ficou a sociedade industrial que marcou os séculos XIX e XX. Fomos criando o que hoje se vai designando por sociedade do conhecimento.
A sociedade industrial mostrou-se fortemente hierarquizada e teve uma rígida divisão do trabalho. À escola pediu que formasse trabalhadores para as diferentes prateleiras da pirâmide social. No topo, queria-se uma pequena elite dirigente e na base uma massa de trabalhadores indiferenciados. O ideal apontava para a formação duma elite de licenciados, uma classe mais ou menos alargada de operários e funcionários especializados e, na base, uma larga massa de trabalhadores indiferenciados desejavalmente possuidores da instrução primária. Foi para estes objectivos que se pensou a escola que ainda temos. Seguramente que não é esta a hierarquia social e de formação que a sociedade actual nos pede.
Antigamente, a produção de conhecimentos e a tecnologia produziam-se a ritmos relativamente pausados. Aprendia-se para a vida inteira. Por isso a vida se divia em três fases. A juventude como tempo de aprender. A idade adulta como tempo de produzir. E a velhice como tempo de esperar tranquilamente o fim da existência. A sociedade mudou, mas esta velha  concepção continua presente nas políticas do actual governo conservador e não apenas no campo educativo. As políticas sociais de Bagão Félix, nomeadamente as que procuram alterar o tempo necessário para a reforma e o tempo dedicado a cada uma destas fases da vida, são exemplos destas velhas concepções. Ora, a nova sociedade pede soluções novas e não a reforma das velhas estruturas.
Nós precisamos de criar um novo paradigma educacional. Um paradigma que tenha em conta a velocidade e o modo como agora se produz conhecimento e tecnologias. Que dê relevo ao facto de as nossas sociedades terem de ser, cada vez mais, sociedades que aprendem. Que não perca de vista que o saber é o fulcro das novas sociedades. Que perceba que a educação, a investigação, a produção de conhecimento, e os trabalhadores do conhecimento, estão hoje no coração das sociedades. A figura geométrica, que pode elucidar o que entendemos por educação e formação, já não é a velha pirâmide do conhecimento, mas um círculo, uma plataforma, onde os cidadãos se dispõem, num plano de igualdade, na sua diversidade e complementaridade, portadores de saberes que se cruzam e se misturam, dando desse modo, origem ao tecido do saber e da competência social.
O novo paradigma centra-se na educação permanente e ao longo da vida. Isto implica uma nova concepção de sistema educativo. É crucial que se reconfigure o sistema escolar. Se configurem os sistemas de educação informal e de aprendizagens ligadas ao trabalho e ao ócio. É sobretudo indispensável aprender a tecer a rede de conhecimento, que suportará a vida profissional e pessoal de todos nós, ao longo das nossas vidas.
As mudanças que precisamos têm de ser profundas e radicais. Têm de partir do ponto em que estamos e do que somos e de corresponder aos desafios, cultura, necessidades e projectos de desenvolvimento nacionais e do mundo de hoje. Temos de construir a alternativa sem esquecer a obrigação de responder, o melhor possível, aos alunos que temos hoje. A ética profissional docente obriga-nos a manter o equilíbrio, tendo um pé no presente e outro no que queremos construir. Fazer o melhor possível, agora, sem descurar a construção de alternativas é uma obrigação dos professores.
Esta Lei de Bases do PSD/PP aponta para soluções de ensino liceal e profissional típicas dos anos 50. Mantém o dualismo destas formações. Aposta na velha pirâmide social e de formações. Aceita e encaminha para o abandono escolar com a novidade de os jovens o poderem vir a fazer, devidamente certificados, com atestados de incompetência. Aposta numa rede escolar predominantemente privada ? escandalosamente paga pelo Estado ? e destinada aos filhos das burguesias, ou seja, os verdadeiros filhos legítimos e herdeiros da Pátria. E para uma rede pública pobre, e destinada aos filhos ilegítimos e deserdados, da mesma Pátria. A Lei é uma velharia imprópria para consumo. Augura-se-lhe vida curta. Não precisamos dela. Precisamos é de discutir o presente e o futuro. Com serenidade, tranquilidade, abertura e competência. Talvez vá sendo tempo de criar o Fórum Português de Educação. As alternativas preparam-se criando espaços de diálogo, de troca e de trabalho.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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