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Pensar português no Brasil

Sobretudo em períodos de depressão psico-económica, faz bem ao ego lusitano passar ainda que seja só uma semana, a correr,   no Brasil mais "histórico" - Salvador da Baía, por exemplo.
Talvez não fique  tempo para honrar  uma boa mariscada e comparar os chopes: um deles tem aquele nome de má memória -"Antártica" - que os contrabandistas franceses (que se estavam nas  trintas para o Tratado de Tordesilhas) queriam dar  a  uma parte, por eles frequentada, do imenso território reivindicado pelos portugueses,  onde  iam saquear o "pau-de-tinta"  (diga-se, em abono da verdade, numa época em que os portugueses ainda não sabiam para que lhes serviria o Brasil, apesar da carta entusiástica e sugestiva de Pêro Vaz de Caminha); tão-pouco para saborear uma refrescante água de coco à sombra do próprio coqueiro  ou  amorenar numa  buliçosa e descontraída  praia sem moliço onde qualquer turista compreenderá porque dizem os filhos da terra que "Deus (o alegre) é brasileiro" e um português tão curioso da  história da colonização como das "oportunidades" que dela remanescem para realizar negócios de ocasião,  até compreenderá porque os "lançados" - como Diogo Álvares (Caramuru),  João Ramalho ou João Tiba - se tenham deixado "perder" no meio da selva e dos índios sem se sentirem consumidos pela saudade - como o literato D.Francisco Manuel de Melo, que, apesar dos onze anos de desterro que passou na Baía, ansioso por regressar à Pátria, nunca se deixou  impressionar  pelas mesmas causas morais e "proféticas" que inspiraram o seu coetâneo padre António Vieira.
Mas, observando os  lindíssimos "arranha-céus" de linhas airosas e pinturas criativas, que até tornariam menos sinistras e ameaçadoras  as favelas que os cercam se não estivessem protegidos por sistemas ostensivos de segurança tão eficazes como outrora as fortalezas dos colonizadores, uma semana chega para  avaliar em que medida a "ameaça"  pode evoluir e deitar a perder os "negócios de ocasião", se não forem encaradas as verdadeiras causas que a geraram, -  estruturas sócioeconómicas mantidas desde o colonizador - bastando, numa fugida, ir às livrarias dos centros comerciais   para,  adquirindo alguns livros e  revistas,  imaginar  até que ponto a herança  do passado (colonial e pós-colonial)  influencia a actualidade.
E, para português meditar, surpresas: uma editora repõe a publicação fac-similar do jornal "Quilombo - Vidas, Problemas e Aspirações do Negro", criado e dirigido entre 1948 e 1950 pelo "papa" do Movimento Negro, Abdias do Nascimento, num momento em que as Universidades são induzidas a abrir uma quota de 40% para estudantes negros (Abdias reivindicava uma "bolsa", no seu jornal, em 1948) e se anuncia a publicação de um esperado Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, da autoria de Clóvis de Moura, há pouco falecido; o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra),  vinte anos após o seu aparecimento, reivindica o controlo de  quase metade dos assentamentos de todo o país, sendo que  no Rio Grande do Sul (o dos Fóruns), mais de noventa por cento dos assentamentos têm o MST como base; o historiador Nilton Freixinho, "examinando o passado com olhos no presente" e fazendo uma "releitura" do sertão arcaico do Nordeste do Brasil, com  os movimentos "profético-messiânicos" do beato  António Conselheiro e dos padres Cícero e Ibiapina e as razias "justiceiras" dos cangaceiros Virgulino Lampião, Jesuíno Brilhante e Antônio Silvino ( em Portugal, a versão "reduzida" é o Zé do Telhado), não se furta a ponderar que a associação do "fundamentalismo" religioso ao "terrorismo" social daqueles actores da segunda metade do século XIX e primeira do século XX não é substancialmente diferente da que inspirou o ataque às Torres Gémeas e ao Pentágono, em 2001, e dos seus apostos ou continuados, isto é, uma reacção radical contra uma "ordem social" e/ou "religiosa" que, não raro, se arroga o direito de fazer ela mesma "terrorismo preventivo" contra os "infractores" e os "infiéis" de sinal contrário.
Por estranho que pareça, disseram coisa semelhante, num livro acabado de sair na França, "Le 'Concept' du 11 septembre", dois cientistas sociais de renome: Jacques Derrida e Jurgen Habermas...
E quem reflectir, como Edgar Morin - " É  urgente a abordagem da História de forma global. Cumpre reunir o que historicamente foi separado artificialmente; não podemos separar problemas religiosos e sociais dos problemas económicos e interesses políticos dos donos do poder" - há-de encontrar um intrigante denominador comum entre Canudos e o Iraque, o "santo" de Juazeiro e a "santa" da Ladeira, as peregrinações ao Monte Santo, a Meca ou a Fátima.
Faz bem ir ao Brasil, para pensar o Mundo...

N.A. Este artigo foi escrito antes do 11 de Março em Madrid e da "guerra" do narcotráfico no Rio de Janeiro.


  
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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