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"Livros que andam à solta. Um movimento global e um projecto escolar sobre a leitura"

Como observou Susan Sontag a relação que se estabelece entre leitor e livro é uma relação de desejo. Além do conteúdo, da edição, da encadernação, da ilustração ou do papel, o livro exerce sobre os seus leitores aquilo a que poderíamos chamar uma verdadeira atracção física. Os leitores de livros não se satisfazem (ou pelo menos não se deveriam satisfazer) em ver um livro numa estante de uma biblioteca qualquer ou num escaparate de uma livraria. Um leitor de livros tem de poder pegá-lo. Ser palpável, o livro, frui-se também nessa intimidade sensorial. Aquilo que gostava de sublinhar neste meu «texto bissexto» é que poder tocar naquilo de que se gosta, sentir objectos ou pessoas, é, em última instância, um exercício de liberdade e como tal de prazer ? sinónimos utópicos que vamos esquecendo de conjugar.
Em quase toda a parte, as comunidades de leitores de livros têm uma reputação ambígua, eventualmente marginal, e em alguns casos, perigosa mesmo. Alguma coisa na relação entre um leitor e um livro é simultaneamente reconhecida como enriquecedora e como desdenhosamente exclusiva e excludente. Talvez porque a imagem de um indivíduo enroscado num canto, perdido sobre uma mesa, anichado num portal, sugerisse privacidade impenetrável e acção dissimulada. Por isso mesmo, o imaginário do qual o livro é portador é sempre uma ponte entre o prazer e a liberdade. Também por isso, o livro torna-se tantas vezes equação subversiva e utopia solitária, como ilustra a fábula cinematográfica de François Truffaut  a propósito do livro de Ray Bradbury?Fahrenheit 451?.
O paroxismo da relação de amor com os livros é-nos dado por Jorge Luís Borges. Dizia ele: ?Continuo imaginando não ser cego; continuo comprando livros; continuo enchendo a minha casa de livros.? (Borges, J.L. Cinco Visões Pessoais). O que Borges demonstra é que existem mais do que elementos puramente intelectuais nessa relação e que o acto de ler envolve também uma relação íntima, física, onde vários sentidos participam.
Segundo um inquérito sobre hábitos de leitura em Portugal, encomendado pela Associação Portuguesa de Editores e Livreiros em 2003, 78% da população com idades entre os 15 e os 65 anos declara-se leitor de livros ou revistas, mas apenas 52% destes leitores assumidos leram 1 livro à menos de 1 mês, e cerca de 35% dos leitores leu apenas 1-5 livros por ano. No relatório para a Comissão Europeia (Eurobarómetro Abril 2002) sobre participação dos europeus em actividades culturais, os portugueses são os que menos lêem face aos restantes países da União Europeia. Cerca de 67% dos leitores portugueses declaram não ter lido nenhum livro nos últimos 12 meses.
Hábitos de leitura muito pouco consolidados, para além de uma reduzida participação em actividades culturais somam-se, em Portugal, a baixos níveis de literacia. Seria de estranhar, então, que as coisas pudessem correr bem em matéria de cultura e educação no nosso país. E, de facto não correm, mas sempre vamos encontrando pequenos projectos locais que teimam em resistir à «força dos números»...
Numa escola do ensino particular em Lisboa ? o Externato Rainha D. Amélia ? existe um projecto muito curioso: «Livros em Viagem». Foi iniciado em Outubro de 2003, por um grupo de professoras da escola e é fundamentalmente dirigido aos alunos do 1º ciclo do ensino básico (53 alunos).
A ideia nasceu de uma reelaboração particular de um outro projecto ligado à bibliofilia mas de âmbito global: o ?BookCrossing?. ?BookCrossing? é simultaneamente uma organização e um conceito. Trata-se de uma comunidade de amantes do livro e da leitura que estão associados via Internet (www.bookcrossing.com) e que partilham uma concepção particular do livro e da leitura: tornar o mundo uma verdadeira biblioteca livre. Os livros são lidos e abandonados pelos seus membros, à escala planetária, apenas com um aviso na página da net revelando o lugar e a data onde o livro terá sido ?libertado? (existem ainda outras modalidades como as cadeias de trocas de livros ou os fóruns nacionais e internacionais de membros). Foi justamente com base neste conceito que surgiu o projecto escolar que referi. A ideia foi pôr a ?viajar? livros pelo espaço da escola, para serem lidos e abandonados depois pelos seus leitores, deixando um aviso e comentários num painel criado para o efeito. O processo é totalmente dinamizado por essa pequena ?comunidade de leitores? que vai assim construindo a sua original ?caça ao tesouro? (leia-se livro). E o que mais impressiona são os resultados!
De facto, após 6 meses de projecto, já foram feitas qualquer coisa como 161 leituras ou viagens de livros, tendo participado na iniciativa cerca de 72% dos alunos (94,7% do 4º ano). A média de livros lidos é de cerca de 3 por criança, tendo o 3º ano chegado aos 4,2 livros/criança. Nas primeiras semanas da iniciativa a escola estava verdadeiramente alterada: grupos de crianças à procura de livros pelos lugares mais inimagináveis como a cozinha ou na mesa da portaria; crianças abandonadas à leitura no recreio; um corrupio de avisos e comentários no painel. A dinâmica da iniciativa criou novos leitores, fidelizou bastantes e ?viciou? mesmo uns quantos (crianças que leram em 6 meses 9, 10 e até 11 livros). Para além dos 14 livros libertados houve um ?livro? sobre golfinhos escrito pelos alunos numa das turmas que também está a ?viajar?.
A criação de novos leitores é já de si relevante neste projecto, mas a concepção de que o livro é simultaneamente ?sagrado? como objecto de revelação pessoal, subjectiva, interior, e também ?libertário? como objecto de partilha, livre, voando de mão em mão, parece-me uma excelente ideia. Num país onde as bibliotecas ainda escasseiam ou são ainda demasiadamente monásticas, onde o preço do livro é excludente e os hábitos de leitura pouco dinamizados, este projecto amplia a relação de prazer e liberdade com o livro e a leitura. Como dizia, Ramón Gómez de La Serna, nas suas Greguerías: ?O livro é um pássaro com mais de cem asas para voar?. Temos apenas de saber potenciar o seu voo... 
No próximo mês, Luís Souta retoma a sua abordagem do Portugal e/Imigrante.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Paulo Raposo
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE, Lisboa
Paulo Raposo
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE, Lisboa

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