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Crianças trabalhadoras, crianças resilientes?

Sair do barraco é muito bom. Ter paredes de tijolos traz mais segurança, é mais quentinho. Agora vou colocar piso, um piso bem bonito, combinando com a cor da parede, brilhando muito. 
( Sérgio, 11 anos) 

O convívio com crianças trabalhadoras, nos últimos anos, tem me ajudado a aprender com elas e a partir delas, sobre suas lógicas, hábitos e, principalmente, como encaram as inúmeras situações adversas. Hoje consigo perceber algumas características comuns entre elas e destaco a resiliência que, segundo Melillo e Ojeda (2000), é a capacidade humana para enfrentar, sobrepor-se e ser fortalecido ou transformado por experiências de adversidade.
Sérgio, como tantas outras crianças com as quais venho trabalhando em minha pesquisa, me parece ter um comportamento resiliente. Ele mora com a mãe e uma irmã em uma comunidade no centro da cidade de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil. Fala com tristeza sobre a perda do pai com problemas de saúde e do irmão na guerra do tráfico de drogas, sentindo-se responsável por sua família. Acabaram de ser beneficiados pelo projeto Favela Bairro, ganhando uma casa de alvenaria que ainda necessita de acabamentos, como piso e pintura.
Apesar da difícil situação que enfrenta, Sérgio não se deixa abater, luta a cada dia por seu bem estar e pelo bem estar de sua mãe e de sua irmã. Sabe que apesar de tudo o que aconteceu em suas vidas e de todos os obstáculos que tem à sua frente, é preciso reagir positivamente, enfrentando as situações surgidas, resultantes de um processo social aviltante.
O processo vivido fez com que  Sérgio aprendesse sobre o quanto é capaz de lutar, enfrentando o dia-a-dia, lutar pelos seus sonhos, acalentar esperança, fazer sua própria história. Ele não aceita seu destino como predeterminado, identificando, ou melhor, criando espaços para dar outro rumo a sua vida, a partir da soma de esforços com sua mãe e irmã.
Ao conversar comigo, Sérgio contou sobre o que já havia feito com o dinheiro recebido vendendo doces no sinal de trânsito em dias de chuva, e refrigerantes em dias de calor.  Com apenas 11 anos de idade, mobiliou a casa, inclusive comprando aparelhos eletrodomésticos como fogão, geladeira e televisão. Com satisfação contagiante narrou-me  orgulhosamente o que tem conseguido fazer e, faz planos de, em um futuro próximo, poder comprar uma televisão para o seu quarto. Sente-se potente, capaz de transformar a realidade na qual vive e da qual faz parte.
Quantas vezes encontramos em nossa sala de aula, crianças que olhando para nós, seguindo nossos passos, demonstram algo diferente, ainda não identificado por nós? Quantas vezes nos perguntamos sobre o que realmente lhes interessa, que tipo de vida levam, como se comportam em suas casas com suas famílias e, que papéis desempenham? Por trás da criança há um ser humano, com uma história a ser contada, uma vida a ser vivida, com sonhos a serem realizados.Qual o nosso papel neste contexto?
Sérgio, ao enfrentar situações adversas, se potencializa e, chegar na escola, traz consigo a esperança de mudar de vida através dos estudos, sabe a importância da escola para o seu futuro e o de sua família e, por isso, investe como pode para nela permanecer. A densidade do cotidiano escolar o desafia permanentemente, fazendo-o superar-se a cada dia.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Margareth Martins de Araujo
Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil
Margareth Martins de Araujo
Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

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