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A rua é pequena demais para tantas histórias e perplexidades

RUAMUNDO

Um movimento crescente foi tomando conta das ruas, invadindo o silêncio das residências e capturando a atenção das pessoas. Pouco-a-pouco, senti-me tomada pela curiosidade e, deixando-me envolver por ela, mergulhei em um universo do qual tentara, ainda que  provisoriamente, me  afastar.

Estava de férias na casa de praia. O cansaço acumulado, o desejo de quebrar o ritmo intenso de atividades, a mudança de paisagem convidavam-me a viver aquele período de um outro jeito. Procurei romper com práticas que constituem meu existir, desligar-me de meu entorno, buscando um certo isolamento. Quis fazer daquele espaçotempo algo mais intimista e aproveitei a oportunidade para manter uma interminável interlocução com minhas lembranças. Lembranças pessoas, lembranças coisas, lembranças que me assaltavam por todo o tempo, convidando-me a destecer e retecer a trama que torna aquela casa tão significativa.
 Não sei precisar quando aconteceu: há dias havia abandonado o calendário e mesmo o relógio. Parecia uma manhã de Verão como tantas outras, mas estava carregada de surpresas. Um movimento crescente foi tomando conta das ruas, invadindo o silêncio das residências e capturando a atenção das pessoas. Pouco-a-pouco, senti-me tomada pela curiosidade e, deixando-me envolver por ela, mergulhei em um universo do qual tentara, ainda que  provisoriamente, me  afastar.
Naquela manhã, a cidade praiana fez-se palco de um concurso público, realizado pela prefeitura municipal. Ônibus e automóveis que tomaram as ruas e engarrafavam a principal via de acesso ao município indicavam, através de suas placas, as longas distâncias percorridas pelos candidatos em busca de uma oportunidade de trabalho. Profissionais com formação superior ou nível básico chegavam de todos os cantos do país, atraídos pela possibilidade de emprego, fazendo dobrar o número de pessoas que circulavam pela cidade, alterando significativamente a paisagem urbana e recriando modos de enfrentar os desafios que iam se apresentando. 
A rua ficou pequena demais para tantas histórias e perplexidades. Uma candidata, desesperada por estacionar o carro e sem ter como fazê-lo, não hesitou em deixar seu automóvel em casa de desconhecidos, com as chaves e os documentos, para não perder o horário do concurso.
 Estava de férias na casa de praia e, naquela pequena rua, pela porta de minha casa passava o mundo: o desemprego, a migração em busca de trabalho, a ansiedade, a confiança no outro, o medo, a solidariedade.
O movimento da rua emprestou maior materialidade àquilo que sempre esteve presente e que tentativas de isolamento não conseguem romper: a articulação de nosso cotidiano a tantos outros. O movimento da rua permitiu ainda entender ? a todos que se fizeram atentos a seus sinais ? que a vida cotidiana não está fora da história. O burburinho da rua lembrou-nos como, no cotidiano, homens e mulheres experimentam, equacionam, vivenciam, de formas múltiplas e diversas, tensões, conflitos da sociedade mais ampla, apontando-nos que não se pode separar o individual do coletivo, o micro do macro, o interior do exterior. Na verdade, como nos indica Merleau Ponty, o mundo está todo dentro, e eu estou todo fora de mim.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Geni Amélia Nader Vasconcelos
Univ. do Estado do Rio de Janeiro. Grupo de Pesquisa Redes de Saberes em Educação e Comunicação
Geni Amélia Nader Vasconcelos
Univ. do Estado do Rio de Janeiro. Grupo de Pesquisa Redes de Saberes em Educação e Comunicação

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