Página  >  Edições  >  N.º 134  >  A sociedade do conhecimento é a base do futuro

A sociedade do conhecimento é a base do futuro

No mês em que se comemora o Dia Internacional do Trabalhador, a PÁGINA quis saber que mudanças se operaram nos últimos anos no plano das relações e da natureza do trabalho e qual o papel que está reservado no futuro próximo para os profissionais ligados à chamada "sociedade do conhecimento", como é o caso, entre outros, dos professores. Para procurarmos algumas respostas a estas e outras questões entrevistamos Carlos Gonçalves, investigador do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) e professor de Sociologia do Trabalho naquela faculdade, que se tem debruçado precisamente sobre o universo do emprego e das profissões.

Em que contexto surge a sociologia do trabalho como disciplina e matéria de estudo?

Para responder a essa questão seria melhor começar por recordar que a Sociologia não era reconhecida como uma ciência social e que não existia enquanto área de formação universitária em Portugal até à queda do regime salazarista. Com a queda do Estado Novo inicia-se um processo de institucionalização da Sociologia e da emergência e do desenvolvimento da investigação nesta área, tendo-se assistido, desde então, a uma crescente afirmação da disciplina e a uma crescente visibilidade social e profissional dos sociólogos.
A partir de meados dos anos 80 verifica-se um incremento da oferta e da procura do sociólogo no mercado de trabalho, não tanto a nível da docência e da investigação científica mas mais como quadros e técnicos qualificados, seja na administração pública, nas empresas ou em outras organizações. É neste contexto, feito de sucessos mas também de alguma dificuldade de afirmação e reconhecimento, que a Sociologia tem vindo a crescer em número de alunos e de licenciados.
Actualmente existe uma oferta de cerca de onze licenciaturas, entre universidade públicas e privadas, abrangendo um público alargado, bem com uma produção intelectual significativa, manifestada em congressos, eventos científicos, na publicação de livros e, particularmente, numa capacidade acrescida de produção de conhecimento sociológico sobre a sociedade portuguesa. Por vezes, essa produção é interrompida ou afectada pela falta de recursos financeiros, como tem acontecido nos últimos dois anos em resultado dos cortes de verbas destinadas à investigação científica.

E no caso da sociologia do trabalho?

A Sociologia do Trabalho é historicamente assumida como uma área de especialização da Sociologia no contexto europeu do pós-guerra. Em Portugal, tal como já referi, o seu impacto só será sentido após o 25 de Abril de 1974, acompanhando genericamente aquilo que se passou com a Sociologia em geral.
Ao longo deste período, as problemáticas, os temas de investigação e a forma como os sociólogos do trabalho abordam o seu objecto de estudo tem sofrido cambiantes, tanto em Portugal como no espaço europeu, que acabam por acompanhar as mudanças que foram tendo lugar.
Hoje em dia tornam-se mais prementes temas como a mudança tecnológica e a mudança organizacional, as novas formas de emprego e, particularmente, as questões da flexibilidade organizacional e da precariedade do trabalho, as relações entre a dinâmica social e a evolução das tecnologias da informação e do conhecimento no sentido da produção de novos empregos, novas qualificações e competências e as novas formas de relacionamento no contexto de trabalho.
No mesmo período, o estudo de temas ligados ao movimento operário português ou à participação dos trabalhadores nas empresas, algo que foi regredindo em Portugal desde a revolução de 1974, foi perdendo peso. Inclusivamente áreas de estudo mais amplas sobre a própria dinâmica do movimento sindical foram dando lugar a investigação sobre as organizações, as competências ou a formação profissional.

Qual é a capacidade de colocação no mercado de trabalho dos sociólogos? O país tem estrutura e capacidade para acolher esse trabalho?

Há situações díspares que variam, inclusivamente, em função do contexto geográfico do país. Olhando para o caso do curso de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e baseando-me nos estudos que têm sido realizados periodicamente, temos verificado que existe capacidade de intervenção e inserção no mercado de trabalho.
Apesar de ainda persistirem alguns problemas neste domínio, por força da conjuntura de desemprego que actualmente abrange não só os sociólogos como os licenciados em ciências sociais e humanas em geral, a receptividade ao sociólogo pode ser considerada importante em alguns sectores e fraca em outros.
No caso dos organismos do Estado, até por força de algumas directivas emanadas da União Europeia (UE), a intervenção do sociólogo, simultaneamente na área de intervenção e de investigação, é encarada como fundamental e encorajada. Por parte de outras organizações essa recepção é menor, por vezes devido à inexistência de recursos financeiros mas também pelo posicionamento face a formas tradicionais de gestão e de controlo.

O termo mercado de emprego é utilizado com cada vez maior frequência. Será que ainda faz sentido falar exclusivamente em Sociologia do Trabalho ou a sua terminologia deve ser alargada?

Sim, faz sentido. Há quem faça a distinção entre trabalho e emprego classificando o primeiro como um conjunto de actividades humanas não baseadas numa relação de carácter salarial, e há quem não faça essa distinção e assuma que o trabalho é uma forma de emprego assalariado. Neste aspecto não há concordância.
Na minha opinião, e apesar de alguns autores afirmarem que o trabalho perdeu alguma importância como valor societal fundamental, defendendo que existem outras dimensões na vida com mais importância para as pessoas, o trabalho e a relação salarial continuam a ser um factor fundamental para a construção das identidades nos processos de socialização e para a própria construção da dinâmica sócio-económica de qualquer sociedade ou país.

Profissões científicas e intelectuais
não escapam à precariedade

Como se caracterizava a estrutura e a relação de trabalho há trinta anos em Portugal?

A sociedade portuguesa dos anos sessenta baseia-se num Estado de natureza totalitária, com ausência de liberdades e de garantias, com uma situação politicamente complexa devido à guerra colonial e à questão da inserção da sociedade portuguesa em termos europeus e mundiais.
No plano do trabalho temos um país onde não estão previstas regras mínimas de funcionamento das relações de trabalho ? existem sindicatos, é certo, mas são em grande medida controlados pelo poder político ?, profundas desigualdades salariais e a inexistência de uma relação livre de negociação entre sindicatos e entidades patronais, fortemente controlada em termos jurídicos por parte do Estado.

Quais eram as actividades dominantes do ponto de vista económico e social?

Se olharmos para a estrutura social da sociedade portuguesa nesse período verificamos que ela é fortemente marcada pelo sector primário, que empregava cerca de 50% da população activa. O sector secundário absorvia aproximadamente 20% e o terciário 30%. Portugal era aquilo a que se podia chamar um país rural.
A grande mudança que ocorre em termos destes três grandes blocos da população activa face à actualidade (números do ano 2000) caracteriza-se por um decréscimo rápido do sector primário (hoje ronda os 12%, com a média comunitária a situar-se nos 4,1%), um acréscimo substancial da população afecta ao sector terciário (54%) e um ligeiro acréscimo ? apesar da diminuição sentida após os anos 90 ? da população empregue no sector secundário (cerca de 34%).

Que modificações trouxe esse processo de terciarização em termos da natureza das relações de trabalho?

A transformação ao nível dos sectores produtivos e o processo de terciarização em Portugal é acompanhada de outros movimentos que habitualmente não são tidos em conta e que interessa analisar.
Em primeiro lugar, o acréscimo da participação da mulher no mercado de trabalho, em particular após os anos 70, fruto das condições políticas e culturais do regime democrático que se instala no país após a revolução. Hoje em dia, a entrada da mulher no mercado de trabalho é vista de uma forma perfeitamente natural e intrínseca à própria dinâmica social. Entre os escalões etários dos 15-64 anos essa participação está calculada em 64,6%, ao passo que no princípio dos anos sessenta essa taxa representava pouco mais do que 16%.

Apesar disso, os direitos laborais das mulheres ainda não são respeitados na íntegra e existe desigualdade de tratamento face aos homens...

Sim, apesar de este processo de terciarização ter sido, em grande parte, baseado através do emprego de mulheres, isso não se tem traduzido numa igualdade de direitos no mercado de trabalho.
Há desigualdades em termos de acesso a determinados postos e carreiras, em termos salariais, em termos da sua própria condição biológica ? no que diz respeito à gravidez e ao parto ?, uma maior vulnerabilidade face ao desemprego e à precariedade, que atinge mais as mulheres do que os homens, apesar de, neste aspecto, não sermos um caso único no contexto dos países ocidentalizados. Não é por acaso que a UE tem programas destinados a promover a igualdade de género no plano laboral e que o próprio Estado cria condições favoráveis à participação da mulher no mercado de trabalho.
Mas, tal como dizia, este processo de terciarização, alimentado em boa parte pela participação da mulher, conta, no caso português, com um outro processo relevante na estrutura da população activa, que é o acréscimo dos níveis de qualificação e do número dos quadros técnicos e intelectuais a nível da produção - fruto da expansão do ensino superior e do próprio sistema de ensino a partir dos anos 80 - no qual há também uma participação relevante da mulher.
Apesar de a sociedade portuguesa ainda manter alguma discrepância em relação à média europeia neste aspecto, é inegável que se assistiu, nos últimos anos, a um acréscimo da qualificação da população empregue nos sectores produtivos.

As mudanças que tem vindo a referir alteraram também o tradicional conceito de luta de classes em favor da emergência de uma nova classe média. Concorda?

Na minha opinião, o factor determinante para o posicionamento do indivíduo na sociedade continua a ser a sua condição ao nível do processo e da relação social de produção.
Claro que todos estes movimentos, nomeadamente de terciarização, têm conduzido ao acréscimo, em termos absolutos e relativos, daquilo que nós chamamos as novas classes médias, parte delas com um nível educacional e qualificacional elevado, assentes em contexto urbano, com uma filosofia de vida que atribui uma crescente importância às questões do lazer, dos consumos culturais, da educação e da saúde.
Por outro lado, assistiu-se também à emergência de segmentos dessas classes médias menos escolarizadas, com menores qualificações, auferindo salários mais baixos, que acabam muitas vezes por exercerem actividades pouco motivadoras, como é o caso de alguns sectores industriais e de serviços, onde é abundante a relação contratual de cariz precário.

Mas que atinge igualmente actividades científicas e intelectuais?

Sim, a questão da precariedade, que é vista a partir dos meados dos anos setenta, quer no contexto português quer europeu, como uma medida directa da regulação do mercado de trabalho no sentido de flexibilizar a mão-de-obra e torná-la mais contingente face às flutuações económicas, tem vindo a estender-se socialmente e não é exclusiva das profissões tradicionalmente associadas ao operariado.
Hoje em dia há em Portugal uma parcela significativa da população activa que trabalha na área dos serviços numa situação de instabilidade e de insegurança. E não é preciso ir buscar exemplos ao sector privado, já que na própria administração pública existem sectores como a saúde e a educação em que o regime contratual é precário.
Muitos trabalhadores qualificados das áreas científicas e intelectuais, auferindo frequentemente salários mais elevados do que a média mas com um vínculo laboral precário, passaram a ser designados, aliás, como intelectuais precários. Basta lembrar que na própria carreira universitária e do politécnico em Portugal apenas 20% do corpo docente ocupa lugares de quadro.

Aposta na sociedade do conhecimento
é determinante para o futuro

Perante os dados existentes e o cenário de evolução para o curto e médio prazo, que alterações se podem esperar ao nível do papel e do próprio conceito de trabalho no futuro próximo?

Ao nível das ciências sociais, e nomeadamente da Sociologia, é arriscado fazer prospectivas. Porém, existe um conjunto de questões que merecem alguma reflexão, principalmente tendo em conta os grandes objectivos estabelecidos para a área do emprego na Cimeira de Lisboa, realizada em 2000.
Nessa altura, ficou decidido que a UE deveria tornar-se no espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo, apostando no conhecimento como fonte de riqueza, num crescimento económico sustentável, com mais e melhores empregos e maior coesão social.
Este projecto político defendia também que se deveria por em prática políticas de emprego que permitissem alcançar, em 2010, um patamar de 70%, aumentando para 60% a taxa de emprego das mulheres - colocando-se inclusivamente a tónica na possibilidade de alcançar o pleno emprego -, da melhoria da qualidade, da produtividade e da competitividade, não realizáveis à custa da exclusão social e dos menos qualificados, nomeadamente no que se refere à utilização das novas tecnologias da informação.
Só que, desde então, a evolução económica não correu como o esperado, houve um abrandamento da actividade económica, levando à diminuição do número de postos de trabalho. Por outro lado, continua a verificar-se um envelhecimento rápido da população, com implicações ao nível do mercado de trabalho e de um conjunto de despesas inerentes à segurança social, assistência e saúde ? lembre-se que actualmente os idosos representam 16% da população da UE e em 2010 serão 27%.
Paralelamente à diminuição da população activa, mantêm-se taxas elevadas de desemprego superiores a um ano, uma baixa geral da produtividade, uma subutilização dos recursos humanos e da qualificação do emprego, não se vislumbrando, a curto prazo, uma retoma económica tão ampla como seria de esperar, a persistência de problemas políticos - agravados ultimamente pela intervenção americana no Médio Oriente -, a manutenção dos mecanismos da globalização de cariz neoliberal, com todas as consequências sociais e culturais que ela acarreta, pelo que, neste momento, subsistem algumas interrogações acerca do futuro.
Julgo que a única base de certeza que podemos ter se baseia na necessidade do contínuo investimento em conhecimento científico, em mão-de-obra mais qualificada, na capacidade do sistema de ensino em produzir novas competências, na melhoria continuada dos processos de qualificação profissional e na capacidade de levar à prática a aprendizagem ao longo da vida, fundamentais, na minha opinião, para a sedimentação daquilo que alguns chamam a sociedade da informação e do conhecimento.

Que lugar ocupam hoje os trabalhadores do conhecimento na hierarquia da estrutura do trabalho, nomeadamente os professores?

Penso que as actividades ligadas à produção e à utilização do conhecimento de carácter científico - principalmente no contexto dos países economicamente mais desenvolvidos, e sem esquecer que este é um aspecto que está também dependente, em grande parte, da posição que cada país ocupa no processo de globalização económica e nos processos de divisão internacional do trabalho -, continuarão a ser as profissões de charneira.
No caso de Portugal, e olhando para os dois últimos anos, houve uma estagnação no processo de crescimento da investigação científica - que se vinha desenvolvendo a partir de meados dos anos noventa -, acompanhado de importantes cortes no sector educativo e na manutenção de um grupo alargado de professores em situação de desemprego, num país que ainda mantém elevados índices de desigualdade em termos escolares, onde persiste uma elevada taxa de abandono precoce no ensino obrigatório e, mais importante, no ensino secundário, e fortes desigualdades do ponto de vista cultural. É um quadro que, julgo, não pode deixar de ter efeitos perversos no futuro.
Apesar de todos os argumentos em favor do equilíbrio das contas públicas, este quadro aumenta obviamente o carácter de desenvolvimento intermédio e semi-periférico que a sociedade portuguesa tem no contexto do mundial e europeu. As profissões ligadas ao conhecimento têm um peso cada vez mais importante, não tanto em termos numéricos, mas em termos dos processos de produção. Não apostar aí, mesmo que haja argumentos em defesa da contenção das despesas públicas, é dramático para um país que se quer europeu.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Carlos Gonçalves

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Carlos Gonçalves

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo