Página  >  Edições  >  N.º 133  >  A profundidade como discurso

A profundidade como discurso

ESPECTROS DE UMA IDEOLOGIA

Uma das principais características de toda a ideologia dominante é o facto de ela se (auto)difundir extasiando auditórios. O discurso da produtividade para o progresso é um desses casos em que é (auto)validado mais pela temulência que provoca do que pelos avanços civilizatórios que proporciona.

A propósito, quanto a nós, não foi à-toa a descrição que Walter Benjamin fez da obra de Klee. Referimo-nos ao quadro Angelus Novus. Diz Benjamin que ele representa um anjo que parece preparar-se para se afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde, para nós, parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não pára de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança sobre seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas. Esta tempestade é aquilo que nós chamamos progresso.
Trata-se contudo de um progresso que, como nos realçou Herbert Marcuse, supõe uma ideia de produtividade cuja lógica engloba o atendimento de supostas ?necessidades? como a produção de equipamentos bélicos, a expansão de uma urbanização destruidora do meio ambiente e um conjunto de frivolidades que são incutidas no ser social como forma de alimentar, quotidianamente, o quadro estrutural de êxtase onde ele está situado ? e que, à maneira frankfurteana, dizemos nós, não resultam de uma cultura de massa, mas sim de uma indústria cultural. São os espectros de uma ideologia. O ?anjo de Benjamin? é um anjo que se encontra perpassado pelo estranhamento perante si próprio, provocado pela dinâmica que, assente no pressuposto da produtividade, põe, desreguladamente, o sistema produtor de mercadorias a funcionar.  
Estes fenómenos trazem implicações para a própria temporalidade, para a forma como as pessoas se relacionam individualmente com ela ? embora, a princípio, isto não seja perceptível. O tempo que em decorrência de tais fenómenos emerge, é um tempo compreendido como linear ou como uma curva infinitamente ascendente, como um devir que deprecia a existência. O presente é vivido em relação a um futuro mais ou menos incerto. O futuro ameaça desde o início o presente, sendo imaginado e vivido com medo. O passado fica para trás, sem possibilidade de superação e de retorno, mas precisamente por não ter sido superado ele ainda determina o presente. Nesse tempo linearmente vivido, o tempo pleno, a duração da satisfação, a duração da felicidade individual, o tempo como tranquilidade só pode ser imaginado, por exemplo, como sobre-humano. Isto é, como beatitude eterna, ?possível? e imaginável após o desaparecimento da existência sobre a terra.
Decerto que indo mais além, por esta via, encontrar-nos-íamos com Freud: O desenvolvimento da civilização está fundado na opressão, restrição, recalque das pulsões sensuais. Neste sentido, poder-se-ia sublinhar que o organismo humano, regido originalmente pelo ?princípio do prazer?, nada mais quer do que evitar a dor e obter prazer, mas a civilização não permite este princípio.  
Seja como for, os espectros da ideologia da produtividade nutrem (e são nutridos por) uma espécie de eterno carácter misterioso e ?mágico? do mundo das mercadorias, como se estas emergissem de um processo desprovido de condicionamentos e não-resultante de uma relação social. Contudo, é próprio do movimento dialéctico societal criar condições para a superação daquilo que é a marca maior de toda a ideologia dominante, isto é, a ideia de perpetuidade das situações que ela propaga. Talvez seja possível, na sequência desta démarche, ver consubstanciada a hipótese que Benjamin, a partir das ilações tiradas da descrição do ?anjo extasiado?, nos propõe: a devolução da satisfação que a adaptação nos impede de ter, o prazer em que se articulam os sentidos e o espírito.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 133
Ano 13, Abril 2004

Autoria:

Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo