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Uma marca indelével

1. Não sei, C. Estás a morrer de medo e eu compreendo-te. Estaria da mesma forma se estivesse no teu lugar. Tens um ser humano a crescer dentro de ti. E agora? Nem acreditas. Choras e vomitas ao mesmo tempo. De medo ou mais do que isso. De pânico. Quase morres. Eu morro um bocadinho contigo. Merda de vida. Que andam estes miúdos a fazer? Mas está feito, está feito. Tudo hoje começa mais cedo, já se sabe. Mas isso não altera nada. Catorze anos são catorze anos. Uma idade de sonhos grandes, ontem como hoje. Não queres. A única coisa que sabes é que não queres esta realidade.

2. Choras e vomitas ao mesmo tempo. Soluças profundamente. Queres esvaziar-te ou voltar atrás. Ou então morrer depressa. Repetes que não queres milhões de vezes. Mas nada se altera. Que não queres compreendo-te eu mas não te ajudo nada com a minha compreensão. Merda de vida. Uma pedra-pomes que te limpasse toda por dentro e te pusesse de novo como eras antes. Eu não consigo ajudar-te. É a tua realidade. A que não queres mas a que tens. E da qual não podes fugir.

3. Catorze anos. Os teus sonhos não passavam por aqui. Quase nada entendes ainda da vida. Mas entendes dela o bastante para saberes que ter um filho aos catorze anos é uma complicação imensa. Não é apenas ter um filho. É ser mãe. Tê-los, ao que me dizem, pode até nem custar muito. São nove meses e pronto. Mas ser mãe? Ao ser-se mãe é-se para toda a vida. Um filho agarra-se a nós como uma pele. Para onde nós formos vai ele também connosco. Ser mãe aos catorze anos. Quando ainda não se sabe bem o que se é e o que se quer. Como podes, pois, decidir alguma coisa? Compreendo-te: os teus sonhos todos baralhados.

4. Digamos que tens duas possibilidades. Ou queres esse filho ou não queres. Não sabes o que queres. Eu sei. Hás-de hoje decidir uma coisa e amanhã o contrário. E não tens muito tempo para decidires e tu sabes disso. Eu também não sei o que decidiria no teu lugar. Nem no meu lugar eu o saberia. Mesmo agora e noutras circunstâncias que não são as tuas. Corta-se uma flor e, nem que seja com a melhor das intenções, é sempre uma flor que se corta. Fora ou dentro das leis e dos discursos dos outros é sempre uma decisão aterrorizadora. Porque individual e irreversível. E isso há-de pesar-te para toda a vida. Uma marca indelével. Para o bem e para o mal.

5. Corta-se uma flor e é sempre uma flor que se corta. E daí não sei. Uma flor é uma flor, uma pessoa é uma pessoa. Não sei se uma pessoa só nasce quando é amada. Parece-me bem que deveria, pelo menos, ser assim. Vejo poucos a exaltarem-se contra as guerras, os assassinatos, as penas de morte. E no entanto, por cada pessoa que se mata, não é apenas uma pessoa que se mata. Cada pessoa tem dentro delas muitas outras. Uma criança angolana, jugoslava ou tchetchena nunca morre sozinha. Morrem também com ela os pais ou os irmãos ou todos os outros que a amam. No caso do ser humano que tens dentro de ti, se o matares, provavelmente morrerá sozinho. Face às maldades do mundo não sei se esta o tornará pior ou se será uma das suas maldades mais pequenas. Tu decidirás. Seja qual for a tua decisão: nunca mais serás a mesma. Agora é como se tivesses um cancro que, embora adormecido, poderá despertar a qualquer momento.

6. Não se decreta nem se referenda as dores e as alegrias individuais. Fala-se de cor e não se sabe nada de nada enquanto as coisas não se pesam pelas nossas próprias medidas. A nossa vida não é igual à de ninguém. Por vezes ela oferece-nos muitos caminhos mas a nós só nos é dado escolher um. Há apenas uma vida para cada um de nós. O caminho pelo qual optarmos há-de ser esse o da nossa vida. Tão simples quanto isto.

7. Aqui te deixo, C., este último recado (pelas palavras dos outros que dizem mais do que as minhas):
"E quando à tua frente se abrirem muitas estradas e não souberes a que hás-de escolher, não metas por uma ao acaso, senta-te e espera. (...) Fica quieta, em silêncio, e ouve o teu coração. Quando ele te falar, levanta-te, e vai para onde ele te levar" (Susanna Tammaro in Vai aonde te leva o coração).
"Os caminhos não conduzem a nenhum lado, mas há um que tem coração e um outro que o não tem. Sobre aquele, a viagem será alegre (...). Sobre este, maldirás a existência. O primeiro te tornará forte, o outro, fraca" (Carlos Castaneda in L'herbe du diable et la petite fumée: une voie yaqui de la connaissance).


NOTA:
este meu texto foi originalmente publicado no Semanário Transmontano de 28 de Fevereiro de 1997. Sete anos depois, não lhe altero uma vírgula, nem uma convicção. Num espaço sobre a Educação e a Cidadania, e perante tanta antiga e actual hipocrisia relativamente a este assunto - de índole individual mas também colectivo - , sete anos depois, digo melhor: centenas ou milhares de abortos depois, apeteceu-me republicá-lo, quanto mais não seja para voltar a questionar onde anda a nossa humanidade, a permitir estas clandestinidades e dores e punições das mulheres ou jovens que, infelizmente ou desgraçadamente, têm de recorrer a ele. Ainda há quem lhes atire pedras?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

Otília Monteiro Fernandes
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro, Chaves
Otília Monteiro Fernandes
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro, Chaves

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